Por FRANCISCO BARROSO
Construa-se o Paraíso
Eu pecador me confesso que, tempos houve, em que a minha receita para os deserdados da vida, os famosos sem abrigo, que tantos há em Lisboa, o meu conterrâneo Zé Amaro que perdoe, era a monda química.
Claro que há razões para isso. A imundice em que se tornam os locais por eles frequentados (papéis, sacos de plástico, embalagens de comida e bebida atirados para o chão sem qualquer prurido), a falta de respeito pelas mais elementares regras de higiene. Vejam bem que tiveram de cortar todos os arbustos do Jardim em frente à Igreja de S. Jorge de Arroios, porque eram sítios óptimos para esconder o traseiro e fazer a cagadinha da ordem, porque para mijar nem é preciso ir tão longe, pois que os pilares da Igreja são ideais e mesmo à mão de semear e ali pertinho da cama.
Isto para dizer que os locais públicos mais aprazíveis de alguns dos bairros lisboetas, se tornaram autênticos cagadouros e nem os turistas, nem os próprios residentes convivem bem com esta realidade.
Outros dias houve também que tocado, quem sabe, pelo Espírito Santo, o meu coração se compadecia desta gente, carregando sempre a sua fortuna, que cabe integralmente num ou dois sacos de plástico, envoltos no seu triste olhar e no pivete que os anuncia ainda vêm longe.
Então comecei a perceber dentro de mim um nítido conflito entre a minha componente biológica (do homem lobo que só pensava na monda química) e minha componente cultural (religiosa: lembram-se do Sermão da Montanha? Bem aventurados os humildes…claro que lembram; que eles são nossos irmãos… A eminente dignidade do ser humano consagrada nas leis do mundo ocidental, que faz parecer verdade a igualdade dos homens perante justiça, basta deitarem um olho à Constituição de República ou à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e isso trouxe-me um certo desconforto, confesso.
Depois pensei. Talvez tivesse outra perspectiva se um deles fosse meu parente próximo. E foi aqui que se deu o clique. Foi só ligar as coisas e a revelação surgiu: somos todos irmãos porque filhos de Deus e somos todos parentes porque o Estado é, nos termos do direito, a nossa família institucional. E porque tem a obrigação de nos proteger em termos de segurança, em termos de saúde, de nos dar instrução, sente-se no dever e não o esquece de nos cobrar impostos criando assim uma relação sinalagmática, como os juristas gostam de dizer.
Nas famílias normais a tendência natural é proteger os mais fracos. Tanto na sociedade humana como na dos mamíferos superiores. Vejam aliás quem é que avança para o combate nas manadas de cavalos. É o líder, o chefe, claro, (isto não é para ti ó Garcia). Não sei se sabem que a sociedade humana contemporânea é a única em os chefes ficam na retaguarda e mandam os miúdos para a frente de combate . É seguramente um sinal de inteligência, mas será de coragem?
Então o meu projecto é este: construa-se o paraíso para os mais fracos, que os mais fortes já têm o seu.
Começamos por retirar o Cavaco Silva do Palácio de Belém, até porque tem casa própria em Lisboa e ganha bem, não se importará seguramente dada a nobreza da causa.
Umas boas camaratas, umas boas casas de banho, um bom refeitório. Nem fica caro. Os portugueses são generosos. Se houver um canal de roupas em bom estado que as pessoas já não usem. O banco alimentar com mais uns produtos que as grandes superfícies ofereçam por questões de prazos e ainda em margem de segurança, além da vantagem para os grupos de solidariedade e ajuda humanitária que todos os dias fazem Kms na cidade para lhes dar o jantar tê-los ali bem juntinhos. Acham impossível?
Não é caro, até porque na quase totalidade, esta gente terá direito ao rendimento mínimo que ninguém lhes paga, porque para o Estado já não existem infelizmente. Acho que por não terem número de contribuinte. E que lindo sítio. Era bom para eles, era bom para nós e era bom para os jardins, que voltariam à sua função natural e não à de campo de refugiados como o é o Jardim do Constantino.
Ó Zé Amaro, o teu sonho da casa do C. ao pé do meu é uma brincadeira de crianças, com a vantagem incomensurável de ser real. Por isso te tiro o chapéu, mas achas ou melhor acham o meu impossível? E chegado aqui começa a atormentar-me aquela verdade que o Pessoa (outro amigo antigo) me ajudou a ver, claramente visto, que é a diferença entre os que nasceram para conquistar o mundo e aqueles que sonham que podem conquistá-lo, ainda que tenham razão.
E mais não disse…