José Teodoro Prata
A foto é dos finalistas de Teologia de 1950, na Guarda. Veio ter comigo, na sequência de um trabalho que fiz sobre o antigo pároco de S. Vicente da Beira, o Pe. António Branco.
Ao passar os olhos pelos finalistas, reparei numa cara conhecida, na fila de cima, o segundo a contar da direita.
É o nosso mestre de Latim e Grego, o professor Abílio, pessoa extraordinário em vários domínios.
Homem baixo e magro, dele se contava que, já padre ou à beira da ordenação, se apaixonara por uma espanhola, mais alta que ele, e abandonara tudo para a seguir. Decisão de homem íntegro, como depois o conhecemos, numa época em que a sociedade tolerava aos párocos uma vida afectiva de duplicidade: castidade na Igreja e amantes lá fora.
Depois espantava-nos com a sua indumentária: dois casacos (casaco e sobretudo) e dois sapatos (sapatos e galochas). Coisas extraordinárias para mim, que durante anos usara os sapatos do meu pai com solas novas de pneu que o Mudo da minha terra lhe deitara e que tantos estragos fizeram, entre os colegas, nos meus primeiros anos de seminarista.
Não me recordo se ele também foi meu professor de Português, no antigo 5.º ano, ou se esta história de passou nas aulas de Latim, já no secundário. Ao falar-nos de Os Lusíadas, transcendia-se completamente e, de forma exaltada, a bater o pé, indignava-se por alguns eruditos acusarem Camões de ter plagiado o poeta Virgílio e a sua Eneida. E jurava, esticando-se todo: “Se ele copiou a Eneida, escreveu um livro muito melhor!”
Sei que alguns dos meus colegas de Língua Portuguesa se passam quando leccionam Os Lusíadas, mas o Doutor Abílio transpirava de exaltação patriótica e imensa sabedoria, como percebi bem mais tarde. Indirectamente, ele ensinava-nos a essência do Renascimento: partir dos antigos, para os superar.
Ele foi o único professor doutorado que tive, durante muitos anos, mesmo mais tarde, no ensino superior. Cátedra da sabedoria bem merecida, pela forma como encarou e neutralizou uma contestação dos seus alunos, em 1974.
O 25 de Abril ocorrera há poucas semanas e, dentro do seminário, nós também vivíamos o entusiasmo da revolução, como era natural numa vila de longa tradição de lutas operárias. Pelos meados de Maio, o Governo Provisório acabou com as aulas aos sábados. Ora, nós tínhamos aulas de Grego ao sábado, pois fazíamos esta disciplina num só ano. Ficámos na expectativa se o Doutor Abílio viria ou não. Mas, à hora certa, o táxi da Covilhã apareceu na curva e estacionou em frente à sala de professores. Frustrados, viemos à janela, com assobios e apupos, mas retirámos, antes que ele nos visse.
Sentámo-nos nos nossos lugares e aguardámos. Ele chegou e disse: “Quando saí do táxi, ouvi alunos a protestar, mas tenho a certeza de que não foi nenhum aluno meu!” Desarmou-nos completamente. Ingenuidade ou sabedoria? Nalguns seres de excepção, elas são uma só.
Nota: Agradeço aos antigos e novos amigos tantos convites para o facebook, mas, definitivamente, esse não é o meu mundo.