O Padre Lúcio visita a minha escola primária e pergunta se alguém quer ir para o seminário do Tortosendo. Não tinha falado com ninguém acerca do assunto; levantei o braço e respondi afirmativamente.
Alguns meses mais tarde, finais de 1972, iniciei uma grande aventura: ingressei no SVD - Tortosendo.
Tímido e introvertido, muito ligado à família, rapidamente me tornei um alvo fácil para os “valentões”. Não jogava bem “à bola” e nunca fui suficientemente corajoso, fisicamente, para andar à porrada. O facto de ser, relativamente, bom estudante, em nada abonava a meu favor; penso, até, que isso provocava a ira dos “valentões” e era mais um motivo para ser massacrado. Hoje, dir-se-ia que fui vítima de “buling”.
Numa das deslocações que uma equipa de psicólogos fazia anualmente ao seminário, a uma pergunta sobre se já tinha pensado, alguma vez, em suicídio, respondi afirmativamente. Os resultados dos testes psicológicos indicavam uma personalidade apática e amorfa. Sentia-me indefeso, sozinho, no fundo do poço.
Algum tempo depois, provavelmente ao ter acesso aos testes, o Padre Soares conversou comigo. Pelo menos desde então, senti sempre a sua presença, atenta e vigilante, protectora e incentivadora: “Força, vais conseguir que eles te respeitem”.
Em surdina, ou através de simples olhares, a mensagem era sempre a mesma: “Força, tu consegues”.
Quando as férias terminavam e tinha de regressar ao seminário, chorava copiosamente. Ao longe, quando começava a avistar o enorme casarão (seminário), o meu coração apertava. Sabia o que me esperava. Nunca contei em casa o que passava e nunca disse aos meus pais que não queria andar no seminário.
Assim foram os meus primeiros anos de seminário.
Pouco a pouco, a realidade foi mudando …. Os resultados dos testes psicológicos já apontavam para um outro tipo de personalidade, e até passei a ser convocado para a selecção de futebol do seminário.
Desses tempos, para além da omnipresença do Padre Soares, recordo, com saudade, para além de mais dois ou três, o meu grande amigo: António Baptista (S. Jorge da Beira). Obrigado, Baptista (também pela coragem de teres aceite ser amigo de alguém que era o último do ranking da turma).
Passados cinco anos no Tortosendo, rumo a Fátima. O meu único prefeito – Padre Soares – acompanha-nos.
Adorei os dois anos passados no seminário de Fátima, na companhia do Franco, Lúcio, Zé Maria, Nicolau, Albino, Zé Manel, “Pisco”, Zé Prazeres, Tó-Rui, Victor Ramos, ….
Estava convicto de que a minha vocação era ser sacerdote.
No segundo trimestre do antigo 7º ano (actual 11º ano), quando questionados sobre a nossa intenção de prosseguir, ou não, a caminhada para o sacerdócio, sem saber bem porquê, a dúvida, sobre qual o caminho a percorrer, começou a assolar-me.
Foram dias muito difíceis. O caminho mais fácil era continuar. Disso não tenho dúvidas. A maior parte dos amigos ia prosseguir e eu fora educado, pelo menos desde os dez anos, para seguir tal caminho. No seminário, sentia-me como peixe na água. Nessa altura, inúmeras vezes, à noite, sozinho, dirigi-me ao Santuário de Fátima. Pedi imenso a Nossa Senhora que me indicasse o caminho.
Mas, o argumento que me assolava era sempre o mesmo: viveste sempre no seminário, a decisão de prosseguires não é uma decisão em total liberdade.
Não conhecia o mundo cá fora. Senti necessidade de vir ver como era. Duvidava, também, que tivesse qualidades suficientes para estar à altura de assumir a responsabilidade de ser sacerdote. Ainda hoje não sei se foram desculpas que arranjei para mim próprio ou se foi falta de coragem. Saí com a convicção de que voltaria.
Na hora da despedida, duas palavras do Padre Soares: “Se quiseres voltar, a porta está aberta. NUNCA DEIXES DE SER QUEM ÉS”.
Estas últimas palavras ainda hoje ressoam no meu quotidiano.
Os primeiros tempos fora do seminário foram muito difíceis. Sentia-me como um peixe fora da água. Sentia-me um ser um pouco diferente dos demais. Sem saber muito bem o que queria, fui tomando decisões (quase sempre solitariamente).
Sempre acreditei que alguém guiava os meus passos.
Prossegui os estudos mais alguns anos.
Inicialmente, mantive-me muito próximo da Igreja. Todavia, à medida que me ia distanciando, senti necessidade de procurar algumas respostas. Não as encontrei e a participação nos ritos religiosos passou a ser menos frequente.
Tenho uma carreira profissional. Entretanto, casei e tenho dois filhos.
A responsabilidade de educar estes, levou-me a uma reaproximação da Igreja. Senti, então, a alegria da redescoberta do caminho. O regresso às origens fazia todo o sentido. Hoje, sou dirigente do Corpo Nacional de Escutas – Agrupamento do Fundão (José Amaro, o lema do Agrupamento para o corrente ano escutista é: “Deus, Pão e Ternura”. Se tivermos de pagar direitos de autor, pagamos … não sei é quando).
MUITÍSSIMO DO QUE SOU, DEVO-O AO PADRE SOARES.
Para mim, não é possível falar do seminário sem falar do Padre Soares. O seminário “confunde-se-me” com o Padre Soares.
A seguir à minha mãe, o Padre Soares foi o adulto mais importante para mim, no período compreendido entre os dez e os dezoito anos.
Mais, ainda hoje, passados cerca de trinta anos, o Padre Soares é uma das pessoas mais importantes na minha vida. Ainda hoje, sinto, de uma forma muito forte e viva, a sua presença.
Durante anos a fio, raros foram os dias em que, quotidianamente, o Padre Soares não me visitou nos meus pensamentos.
Após sair do seminário, durante bastante tempo, receei reencontrá-lo. Tinha medo que tudo tivesse mudado e que algo pudesse manchar as boas recordações, as imagens, as palavras, os sentimentos ….
Mas não. O Padre Soares continua igual a si próprio e eu, seguindo o seu conselho, não me envergonho de ser quem sou. Continuo muito igual ao que era, esforçando-me, cada dia, por tentar ser um pouco melhor.
Obrigado, muito obrigado, Padre Soares.
Para terminar, uma nota final e uma questão para ponderar:
- O seminário não representou um percurso fácil para muitos de nós e é preciso ajudar esses a fazer o reencontro positivo com o passado.
- Na nossa vida damos testemunho de fé e mantemo-nos fiéis às nossas origens e vivências? Ou isso é coisa do passado?
Sinto meu orgulho em dizer que andei no seminário. Cada vez mais, sobretudo quando consigo que o meu testemunho de vida seja condizente com tudo o que o seminário representa, em termos de valores e de caminho de vida.
Um fraternal abraço para todos os verbitas.