domingo, 4 de julho de 2010

Um prefeito existencialista

   José Teodoro Prata

Trinta e cinco anos depois, reencontro, neste vídeo do “Sabor da Beira”, o meu prefeito do Secundário. Continua igual a si próprio. Nunca lhe conheci discursos de circunstância, nem indicações de caminhos a seguir. Sempre as mesmas palavras de reflexão, simulando desconhecimento de soluções, num convite ao reencontro com nós próprios, para escolhermos os caminhos da nossa vida.

Naqueles anos revolucionários de 1974-75, o Pe. José Vaz, além de reitor do Seminário do Tortosendo, foi prefeito dos alunos do Secundário e professor de Filosofia e Religião e Moral.

Recordo bem uma conversa que eu e o José Antunes tivemos com ele, num entardecer outonal do início do 6.º ano. Passeando em redor do edifício, qual Aristóteles com os seus discípulos, ele falou-nos de D. António Ferreira Gomes, da carta a Salazar e do longo exílio longe da sua diocese do Porto. Ninguém diria que meses depois estávamos em revolução e ele, um homem de pensamento, bloqueado na encruzilhada de tantas direcções e contradições.

Não era dele o caminho do sinistro cónego de Braga e do seu movimento Maria da Fonte. Também não era o do movimento dos Cristãos pelo Socialismo, que agregava o Pe. Guerra, o Pe. Jerónimo e alunos como o José Leitão e o Elísio Gama. Não seria por oposição ao socialismo democrático, pois ele fora educado na social-democracia alemã e falava-nos dela com palavras elogiosas. O que o distinguia é que ele não era um homem de acção. Ele existia para pensar e nos questionar nas nossas escolhas.

Nas aulas, dava-me cabo da cabeça com a Filosofia. Adolescente prático, mais camponês que outra coisa, até me fazia doer a cabeça com tanta interrogação. Mas adorava as aulas de Religião e Moral. Actualmente, sempre que lecciono a História do 9.º ano, recordo as conversas que ele teve connosco sobre Gandhi e Luther King. E partilho-as com os meus alunos, acrescentando Che Guevara, uma mistura que o Pe. Vaz nunca faria, pois não se juntam os dois santos pacifistas com esse mártir também, mas guerrilheiro. Imagino a discordância do Pe. Vaz com os indígenas da região onde mataram o Che, que o veneram como santo, com capela e romaria, num culto à margem da Igreja.

Na sua mensagem em vídeo, ele pede perdão pelos seus erros como educador. Eu, qual Ideafix, só não lhe perdoo ter mandado cortar a cerejeira do caminho para a lavandaria, porque os alunos roubavam as cerejas. Então não se recordava de como se dizia nas nossas aldeias? Roubar para comer não era pecado! Crime, Pe. Vaz, foi não ter mandado cortar o diospireiro junto à piscina, pois várias vezes escorreguei naquele musgo húmido e, se caísse, era morte certa, sem ninguém saber onde é que eu estava!

Concordo com a sua proibição de representarmos a Ceia dos Cardeais do Júlio Dantas. Claro que a coisa não ficou por ali e tivemos de tirar a prova dos nove! Em S. Vicente, levámo-la depois à cena, eu, o Chico Barroso e o Quim Trindade. E, ao gosto do Pe. Vaz, descobrimos, por nós próprios, que a peça não valia nada. Mas, embora contrária à sua natureza, a proibição do Pe. Vaz teve sentido, pois ensinou-nos que tudo tem limites e, quando não são auto-impostos, têm de ser estabelecidos pela sociedade.

Também compreendo a proibição de voltar ao Seminário depois da minha saída, um mês antes dos exames do 7.º ano. Esta concordância é-me dolorosa, pois era costume os alunos saídos recentemente voltarem ao Seminário durante os exames. Aquela era e é a minha casa e a proibição deixou-nos, a mim e ao Chico Barroso, em situação difícil. Culpa minha, pois eu é que estiquei a corda e deixei o Pe. Vaz sem alternativa, como educador. O Chico acabou por ser uma vítima da forma emocional como eu reagi à sua expulsão, pondo em causa muitas coisas, eu que há largos meses vivia uma crise religiosa e por ela teria acabado por sair no final do ano.

O professor Ernesto dizia-nos que andávamos na melhor escola. Eu acho que frequentei a escola mais democrática que conheci até hoje. E digo isto com mágoa, pois sou professor e a escola actual tem uma democracia pouco mais que formal. Nesta escola, tudo é pensado e programado pelos adultos. Os alunos não têm qualquer autonomia e estão totalmente infantilizados por pais e professores. Não há, não pode haver, Padres Vaz a mostrar caminhos e a desafiar escolhas. Não há espaço para isso. Está tudo pensado, é só comer a papinha. Os novos adultos estarão maduros para serem imolados pelos vampiros de sempre, sem pensamento crítico, nem reacção.

Sou um discípulo do Pe. Vaz, totalmente. Reencontrei-o, talvez em 1978. Disse-lhe que aderira à UDP e era dirigente estudantil da Escola do Magistério Primário de Castelo Branco. Senti que ele perdeu a esperança em mim. Depois, comecei a preferir concentrar-me nos meus pequenos mundos de cada momento. E, pouco a pouco, voltei a recordar-me do Pe. Vaz. Nos últimos anos, um certo fascismo social apoderou-se das nossas escolas. Na minha, remei contra a maré quase sozinho, ingloriamente. Continuo fiel a mim próprio, mas deixei os poderes aos outros.

Às vezes, imagino um reencontro com o Pe. Vaz. Seria do género do António Lobo Antunes com o seu amigo Melo Antunes: meias palavras esporádicas, tudo na presença física, pelos gestos, nos olhares.

7 comentários:

  1. Zé Teodoro: boa malha! Parabéns! Os comentários já estão no facebook! NUNCA TE ESCONDAS! De uma simples "brincadeira" as coisas maravilhosos que se despoletaram! Até (sempre), com Setúbal incluído!((Atenção que vai por lá aparecer gente que não vemos há muito tempo, e segundo dizem os "mordomos" há espaço e "bifes marítimos" para todos! (Madeira Antunes)

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  2. Não me recordo do Teodoro!... Ou havia ainda outro? Este texto é formidável! O Pe. Vaz também já sabia, na altura, que o Freud continua a ter razão! Já escrevi e repito e reitero, agora, com o Teodoro: No Verbo Divino, aprendi a democracia (veja-se como se processavam as eleições para os cargos, a atenção prestada pelos superiores à auscultação dos alunos...) Ali tive divergências, despiques..., naturais em qualquer processo de crescimento biológico, intelectual... Nunca, ali, me senti constrangido! Livremente entrei, livremente saí! Se saí, não foi tanto por factores internos inererentes à SVD, mas mais pelo contexto que, então, se vivia na U.C.P. (1975/1977)...

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  3. José Teodoro Prata5 de julho de 2010 às 14:11

    Havia três Teodoros: o mais velho, José Miguel Teodoro, o irmão Artur Teodoro e o primo José Teodoro.
    Quanto ao Freud, confirmo que o Pe. Vaz o conhecia bem: um dia, no ensaio de uma peça de teatro sobre o racismo nos EUA, eu deveria dizer "...a mãe dos meus filhos.", mas atalhei caminho para: "...a minha mulher." Comentário do Pe. Vaz: "Se o Freud aqui estivesse...".

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  4. Caro José!
    Para além destas mensagens, no Facebook, têm sido tecidos outros comentários à tua prosa! Para saberes o quê terás que aderir ao nosso grupo aqui: http://www.facebook.com/home.php#!/group.php?gid=129844067033371

    ABÇ
    Vitor B

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  5. Deleitei-me, ao ler o teu texto e comentários! Coisas tão reais como profundas, e apontando para várias gerações e realidades! Só pela tua reacção, da do Pedro C.Batista, do vitor e outros, valeu a pena o meu reencontro, em Vilar Formoso, com o n/ amigo Pe.J.Vaz (...um grande problema o diospireiro e as cerejas do caminho..., mas todos foram devidamente resolvidos, no seu devido tempo, juntamente com outros muito mais graves! Um grande abraço p/ o José Teodoro Prata! (até Setúbal!) (Madeira Antunes)

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