Se a
  qualidade de uma entrevista se medisse pelas perguntas do jornalista, esta
  seria uma entrevista falhada. Da meia dúzia de questões que a VISÃO levava
  preparadas, duas, três no máximo, foram concretizadas. Frei Bento Domingues,
  frade dominicano, heterodoxo, espírito livre, 80 anos completados em agosto
  último, fala sobre tudo e interpela-se a si próprio. No momento em que a
  Temas e Debates publica mais um volume das suas crónicas dominicais no jornal
  Público (A Insurreição de Jesus, 512 págs., €19,90), a obra de frei Bento
  Domingues também é debatida na Fundação Gulbenkian (ver Homenagem na
  Gulbenkian). E ele, apesar de não ser vaidoso, vai lá estar. Não é de
  clausuras.  
Sabe quem são os seus leitores? 
Tenho uma ideia porque, de vez em quando, vou tendo alguns
  ecos. Há uma franja de gente que se diz católica não praticante, que se sente
  afastada, pessoas que sempre viram o fenómeno religioso de uma forma crítica,
  pessoas que, antes do 25 de Abril, trabalharam comigo na resistência ao
  antigo regime e, depois, também, pessoas que não têm nada a ver com a Igreja
  e que são até bastante anticlericais. 
Os anticlericais são os desagradáveis... 
Não, não são nada desagradáveis. E têm muitas razões
  para serem anticlericais. 
Acha que os seus textos alguma vez contribuíram para
  a conversão de alguém? 
A conversão é, na minha maneira de ver, o fruto da
  graça de Deus e do facto de as pessoas se deixarem abalar por essa graça. 
E alguma vez ajudou alguém a reaproximar-se da fé? 
Muita gente me diz isso. Mas essa questão prende-se
  com a história do século XX português. Durante a I República, houve disputas
  entre franciscanos e jesuítas, por causa da liberdade de voto no Partido
  Nacionalista, e instituiu-se, pela primeira vez em Portugal, uma espécie de
  laicidade lúcida que divide a prática social e política da sua expressão
  religiosa. 
Que o Estado Novo tratou de contrariar. 
Isso é muito importante para entender as
  dificuldades do catolicismo hoje. Os católicos, os próprios monárquicos
  católicos e os bispos achavam que Salazar era produto da providência divina.
  E mesmo que não estivessem totalmente de acordo, aderiram ao regime que deu
  espaço de liberdade à Igreja. Entretanto, todas as vozes católicas
  dissonantes (como a do padre Joaquim Alves Ferreira, que publicou o livro A
  Largueza do Reino de Deus, que, no fundo, era sobre a estreiteza da
  mentalidade católica oficial, ou a do padre Abel Varzim, responsável pela
  divulgação do pensamento católico no mundo operário) foram sendo afastadas.
  Nas eleições de 1958, perante o apoio de alguns católicos a Humberto Delgado
  e a célebre carta de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, o episcopado
  preferiu continuar com Salazar. 
E o que é que, em seu entender, isso ajuda a explicar?  
Por um lado, há uma confusão entre o apoio a Salazar
  e o ser católico. Por outro lado, quando veio o 25 de Abril e os católicos,
  que tinham resistido ao regime, começaram a entrar na política, comete-se um
  erro: os católicos têm a dimensão da intervenção e a dimensão espiritual e
  teológica. Não defendo o partido confessional, sou absolutamente contra,
  militei, durante muitos anos, contra isso. Mas não faz sentido que os
  católicos que entraram na política não tenham tido uma instância que
  alimentasse a sua fé. A política comeu tudo. Além disso, também houve problemas
  internos, na Igreja, que têm, por exemplo, a ver com o facto de o Papa Paulo
  VI, na encíclica Humanae Vitae, ter feito referência aos métodos
  contracetivos. 
Isso afastou as pessoas? 
Para muitos jovens, para muitos casais, foi um
  verdadeiro balde de água fria. A partir daí, muitos católicos passaram a
  viver constrangidos, em duplo registo, outros afastaram-se. É como este
  problema de agora - aos divorciados que voltaram a casar-se é-lhes negado o
  acesso à eucaristia de uma forma, julgo, muito bárbara... 
Não podem comungar... 
A simbólica da missa é a simbólica da refeição. E,
  no fundo, estamos a dizer-lhes: vêm à refeição, mas não comem. O que acontece
  é que, depois, faz-se o catolicismo em autogestão ou à la carte, há um
  assunto com o qual estou de acordo, alinho, mas há outro assunto com o qual
  estou em desacordo, não alinho. Neste momento, assistimos a um alívio
  hesitante, pois as atitudes do atual Papa dão-nos outra respiração. O seu
  texto A Alegria do Evangelho grita esperança. 
O mundo estava a precisar de um Papa popular? 
Não é só de um Papa popular, é de alguém que veja o
  mundo a partir dos excluídos e, sobretudo, que não tenha uma atitude de
  exclusão. Além disso, o Papa Francisco também não está zangado com o mundo,
  respira alegria, tem vontade de unir as pessoas. E, mesmo assim, ainda é
  capaz de falar, como ainda agora falou, sobre a necessidade de fazer frente a
  esta onda de violência em nome de Deus, essas jihads todas. 
Essa necessidade de ver o mundo a partir dos que
  mais precisam é cada vez mais atual? 
Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos
  poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no
  paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na
  descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena
  comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a
  acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os
  momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de
  Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como
  quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o
  princípio da exclusão. 
Em alguns momentos da história, a Igreja Católica
  também excluiu... 
Claro que sim. Dou um exemplo muito simples: entra-se
  numa igreja, numa missa de domingo e alguém fala para aquelas pessoas que não
  podem abrir a boca. O Papa Francisco já disse aos outros bispos e aos padres
  para não aborrecerem as pessoas, que mesmo na ordem moral há uma hierarquia
  de verdades, há umas coisas mais importantes que outras... E há uma certa
  forma de fazer que leva a que, depois, as pessoas digam "isto não
  resolve nada". As pessoas vão à eucaristia para receberem iluminação
  para a semana, para se fortalecerem, para se encontrarem umas com as outras,
  para participarem nesta coisa de ir mudando a nossa vida... Apesar de ser
  minhoto, eu gosto muito da filosofia alentejana... 
Gosta de "ir sendo", como costuma dizer. 
É isso, até porque esta coisa de realizar a nossa
  vida é um processo complicado. O "normalzinho" é um bocado cinzento
  e, depois, há o sofrimento e todo esse mundo de violência com o qual é muito
  difícil lidarmos. Gosto muito de uma devoção que existe perto de Lamego, a
  Nossa Senhora do Alívio, pois penso que estamos no mundo para aliviar a dor
  dos outros. Além disso, também compete à Igreja ajudar as pessoas a
  regozijarem-se com a alegria, a reconhecerem aquilo em que se sentem felizes.
  E não andar a culpabilizá-las por razões de ordem sexual, por trapalhadas... 
A não ser moralista? 
Isso. E é a partir desta dupla atitude que a Igreja
  deve evangelizar. Formar os políticos, os financeiros e os investigadores de
  maneira a que estes se perguntem: estou a trabalhar na banca, mas, então,
  para que é que serve a banca? Estou a trabalhar numa empresa, quem é que
  serve esta empresa? As pessoas não só não se interrogam como são
  deterministas. Ora, a mensagem do Evangelho é antifatal, não temos que nos
  resignar com o mundo em que vivemos. E que mundo é este que queremos fazer?
  Nas minhas crónicas, a única coisa que me importa é esta insurreição: este
  mundo está mal construído e podia ser de outra maneira. 
Nunca se cansa de pregar? 
Não. Primeiro, nunca prego sozinho. E na celebração,
  ao domingo, é a miudagem que ocupa o altar. 
E quando sente indiferença na audiência, não lhe
  apetece, digamos, ir pregar para outra freguesia? 
Descobri o sentido da minha vida numa pregação de um
  padre brasileiro, amigo de meu tio. Eu vivia na religião do terror e, de
  repente, por causa dele, encontrei alegria na relação com Deus. Quando ele me
  perguntou o que é que eu queria ser quando fosse grande, a única resposta que
  veio de dentro foi: "Quero ser como você." Era um miúdo e, até
  hoje, acho que essa foi a coisa mais verdadeira que disse em toda a minha
  vida. 
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