segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Paulo, mestre de sacristia


Este Paulo não foi perseguidor de cristãos e não consta que tenha sido parado numa qualquer viagem para Damasco – o seu trânsito para o Tortosendo foi limpo, directo, sem escalas, meio anónimo, que só mais tarde chegaria à notoriedade, graças a um pé direito em regra muito inspirado no futebol de onze, raro em pesos-pluma como ele.
Em regra alheio às obscuras tarefas defensivas, o filho do senhor Zé V’cente, um dos poucos que, no seminário, usavam chuteiras, jogava do meio-campo para a frente; o pai era dono de uma loja no Sobral do Campo, onde as senhoras da terra e dos arredores se abasteciam de coisas como panos de cozinha, atoalhados e outros adereços de casa, além de roupa de baixo, de homem e senhora. A tia Celeste sempre foi freguesa da loja.
Se alguma coisa fui, como sacristão, ao Paulo o devo: a preparação das hóstias para a comunhão (vinham das Freiras, da Covilhã), a lavagem e o enchimento das galhetas da água e do vinho, acender e apagar as velas dos altares, pôr os livros de missa nos respectivos suportes, a abrir nos sítios certos, ajudar à missa em Latim e em Português, fazer a genuflexão com a elegância e a dignidade adequadas, cuidar das vestes litúrgicas dos senhores padres e ajudá-los no acto de paramentar-se para dizerem missa, a abertura das garrafas do vinho e a sua prova, ou a cor dos paramentos conforme o calendário católico – foi ele, o Paulo, que me ensinou tudo. Também foi por ele que soube do segredo do armário da sacristia.
 Na sacristia pequena, havia um armário com as vestes sacerdotais sem marcas privadas de posse, digamos um guarda-roupa partilhado por todas as suas reverências, apesar das notórias diferenças em altura e envergadura dos protagonistas e da chocante diferença de tamanhos e qualidade das vestimentas, por sinal, sofrivelmente básicas algumas delas, em particular uma casula verde, muito pequena em tamanho e a dar para o feiote.
Já tínhamos suficientes provas dadas, eu e o Zé Neves, o outro sacristão de turno, quando o mestre de sacristia nos passou o segredo do armário. A forma como o recebera dos seus antecessores tinha sido em tudo idêntica, e também na primeira semana do Tempo Comum, que é quando se usa paramentaria de cor verde. Um genuíno sacrista, o Paulo; oiçam-no: “Se o querem ver bravo (referia-se ao padre que se paramentava do lado direito da sacristia, junto à porta), ponham-lhe esta casula. Fica tudo preparado de véspera, não é? Primeiro, a alva, que é a primeira peça que ele veste; por baixo, sucessivamente, a estola, o cordão de pôr à cintura, e, no fundo de tudo, a casula. Ele só dá por ela quando a tiver vestida! Um espectáculo! Da última vez, que foi comigo, só disse: ‘Maldita, esta casula’ e esteve a pontos de a atirar ao chão e pisá-la.” Oficialmente, o acto seria visto como ignorância de principiante; todavia, os dois seminaristas pré-adolescentes sentiam estar perto de viver um momento único. Com a aliciante, apimentada, de ser praticado na pessoa do Padre Prefeito, como uma espécie de sotaina transmontana aplicada aos quase dois metros de estatura do homem dos castigos e das “chapadelas”.
Foi num dia bom, soalheiro, mas ainda não excessivamente quente que a fomos queimar, junto às mimosas, no caminho da vacaria; para lá, fomos em procissão, o Paulo do Sobral levando posta a casula maldita, eu e o Neves a segurar a casula, por trás, quais damas de honor, ele, o nosso mestre de sacristia, numa litania alatinada, nós a acompanhá-lo em esforçada desafinação. Na rua, em todo o perímetro da quinta do Seminário do Tortosendo, só nós os três; os outros, a malta, mais novos e mais velhos, cumpriam as duas horas diárias de estudo obrigatório.
Cumpríamos ordens, nós os três. De manhã, antes das sete, eu e o Neves tínhamos visto o Padre Prefeito, ridiculamente trajado, em transe, numa fúria de todo insuspeitada em pessoa da condição de Sua Reverendíssima. Fui eu que lhe dei a vestir a peça responsável pela crise – a casula verde, singela, quase pobre, que, vestida, lhe chegava apenas um pouco abaixo da cintura; em homem da altura dele, para lhe assentar com a decência mínima, a casula precisaria de ter mais um palmo e meio de comprimento atrás, e outro tanto à frente. No momento em que sentenciou a peça à fogueira, parecia ter vestido um bibe de criança.  
Entre a procissão e o auto-de-fé, andámos lá por fora as duas horas do estudo obrigatório. Finou-se sem glória nem queixas, assistida por três sacripantas, a mal amada peça, vinda porventura no enxoval de um padre mais baixote, ainda por identificar.
As consequências do sacrilégio, se as houve, não sei. Mas, ser sacristão na Casa do Verbo Divino, no Tortosendo, nunca mais foi a mesma coisa.
José Miguel Teodoro

1 comentário:

  1. Quem era esse Padre Prefeito? Imagino? Talvez? So para rir, e para a historia, muito bem contada, porque no meu tempo também ocupei esse cargo varias vezes.

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