terça-feira, 30 de março de 2010

3.ª Revelação

O Paraíso tecnológico

Francisco Barroso

Não sei se já se aperceberam, mas a nossa geração (refiro-me aos que já contam 50 ou mais e nasceram na zona do pinhal ou noutra parte do Portugal profundo) é uma geração afortunada. Afortunada porque nenhuma outra conseguiu, como a nossa, fazer a maior e mais magnifica viagem no tempo de que há memória.

E sinto-me reconhecido ao Grande Espírito, por me ter dado o privilégio de viver nesta época maravilhosa e ter tido a admirável experiência de viajar no tempo. É que viajar no tempo é um dos grandes sonhos da humanidade, principalmente dos astrofísicos. Só que enquanto eles concebem as suas viagens no sentido cosmológico e técnico, a minha é no sentido psicológico e histórico. Mas não perde valor por isso.

Como devem calcular, este tipo de viagem é pessoal e íntima, pois não pode ser feita por interposta pessoa. Aqui não há procurações, nem gestão de negócios, que são meios de representação usados no Direito. Aqui, é como se costuma dizer, cada um na sua.

Reparem então, nasci (como alguns de vós) num sítio e num tempo sem vestígios de progresso. Não havia água canalizada, electricidade, saneamento, casas de banho, nem televisão. Os rádios e os telefones só mesmo os mais endinheirados, que nos meios pequenos chegavam os dedos de uma mão para os contar. E que conforto tinham as nossas casas?

A partir dos sete anos, depois da escola, já se ajudava na faina do campo. Trabalhos leves, mas trabalhos. Férias…quem é que falava disso? Que férias é que os meus pais tiveram? E a maioria dos vossos? E gulodices? Os bolos tradicionais nas festas do calendário. Alimentação: os frutos da terra. Carne, mínima. Brinquedos? Os construídos por nós próprios.

Foi em mil novecentos e sessenta e tal do calendário gregoriano, mas a cena reconduz-se com naturalidade à Idade Média, Não à Idade Moderna ou Contemporânea, pois que, a experiência é rural, não urbana.

Agora caminhemos devagar. As camionetas da carreira, do Pião (Fundão), o comboio, e alguns automóveis já existentes há muito, dão-nos a conhecer as primeiras tecnologias da Idade Contemporânea. Navios, nem os víamos passar, pois se não há mar para aqueles lados.

A aurora futurista começa a surgir anos 70 e 80, com a popularização das famosas telefonias, gravadores de cassetes, os gira-discos, os discos de vinil…

E hoje? O digital invadiu-nos completamente. Máquinas fotográficas, que fazem fotos que nem é preciso revelar, mp3 minúsculos, para ouvir musica em qualquer lugar, com a capacidade de um armário de cassetes, telefones portáteis (há quem tenha vários), televisões de ecrã plano e cristais líquidos, que nos transportam através de imagens com uma nitidez quase real, a lugares remotos de todo o planeta e nos mostram paisagens, bichos e gentes que os nossos avós nem imaginavam que existissem.
E que dizer dos pequenos e potentíssimos computadores portáteis, que podemos transportar para qualquer lado, que nem precisam de fios para trabalhar e que nos permitem comunicar com qualquer pessoa em qualquer lugar da Terra.
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É hoje possível, numa casa incomparavelmente mais confortável, que aquelas de que falei ao princípio, esticado no sofá, visitar o Louvre, o Prado ou qualquer outro museu que me apeteça. Conhecer as obras dos grandes Miguel Ângelo, Van Gogh, Degas, Claude Monet, Renoir e por aí fora.

Ouvir, numa aparelhagem de alta-fidelidade, com um som muito mais perfeito do que aquele que ouviríamos, se pudéssemos lá ter estado, o Concerto para piano n.º 21, de Mozart, com aquele trecho de Maria Madigan que é simplesmente divinal, a 40.ª Sinfonia ou o Requiem dirigido pelo grande Leonard Bernstein. Ouvir o inconfundível saxofone de Jan Garbarek, em Legend of the Seven Dreams, que me transporta invariavelmente às noites estreladas de verão, na Serra da Gardunha (muito mais bonitas que as do Moradal, porque mais perto das estrelas…) ou pressentir a  sensibilidade de Keith Jarrett, em Bye Bye Blackbird, para não falar de Rimssky-Korsakov com o seu voo do moscardo, que o nosso amigo Daniel Reis me confessou ouvir para exorcizar a cava do lameiro em Bogas, nos seus tempos de menino.

E não satisfeito ainda, com o poder que me é conferido pela tecnologia, convoco um dos meus ídolos de juventude e como que por magia, o faço aparecer com três cliques na Internet cheio de talento a cantar aquela musica do tamanho do mundo, que é o Musical Box. Já adivinharam que me refiro ao Peter Gabriel que liderou os Génesis nos seus tempos de ouro (que o Ernesto Hipólito me ensinou a gostar, já lá vão tantos anos). O que é isto senão o paraíso? O paraíso tecnológico onde chegámos através de uma admirável viagem vindos de um passado quase remoto.  

Pese embora a realidade deste admirável mundo novo, uma indelével penumbra se colou na minha alma. E porquê? Porque estou a ficar com a sensação que toda esta prodigiosa maquinaria, construída para nos libertar, está a querer tomar conta de nós. A sua manipulação e o esforço que exige mantermo-nos actualizados, pelo surgimento permanente de novos artefactos e pela sua rápida obsolescência estão a rebentar com o meu neocórtex. O vosso não vos dói?

Para tal basta lembrar o mal-estar que causa o simples esquecimento do telemóvel em casa, quando há 40, 30 ou 20 anos, nem era habitual telefonar. A ansiedade que é fazer a IC 19, em hora de ponta e o tempo que ali se perde, quando há 40 anos era puro prazer dar uma volta de automóvel. A decepção que é precisar de dinheiro e o multibanco mais próximo estar inoperacional (o melhor mesmo é vir a Arroios, lembram-se? São 9 só numa rua), ficar sem net ou aparecer um vírus difícil de debelar. Uma angústia, não é verdade?

Conclusão: toda esta maquinaria nos está a roubar mais tempo do que devia. A angustiarmo-nos mais do que era suposto e isso é mau para nós. É que nós não somos maquinismos, mas organismos. Os organismos para evoluir, criar e serem felizes precisam interagir uns com os outros. Faz parte da condição humana. O que é que eu observo: os jovens com aparelhos nos ouvidos para não ouvir os outros. Jovens e adultos a falar incessantemente ao telemóvel sem reparar na pessoa do lado, depois em casa uns na televisão outros nas redes sociais.

Assim sendo, não parece encaixar nesta sociedade, o crescente fenómenos da solidão. A solidão interior, (que os centros comerciais estão sempre apinhados de gente), mas não estaremos nós a potenciá-la pela multiplicação desenfreada de universos virtuais?

Eu até admito que estes maquinismos nos excitem, mas há excitação maior que apertar nos braços uma mulher, sentir o seu calor, o seu rubor…? Nós somos organismos e é na relação com os outros que cumprimos o nosso desígnio. Somo nós a medida de todas as coisas, como Protágoras ensinava na Grécia antiga, mas é cada vez mais necessário saber medir. E mais não disse, descalçou as luvas, limpou as mãos à parede e foi-se, como dizia o outro.

2 comentários:

  1. Olá Chico. Já estás bom? Sentimos a tua falta, na sexta passada.
    Grande texto, Chico. Só mesmo tu. Fico à espera da quarta revelação. Forte abraço. Zé Duarte

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  2. Está quase fino Zé. Sabes que eu tenho por ti uma grande gratidão de naquela noite da medronheira não meteres deixado caír p'ra linha do comboio. Deus te proteja como tu me protegeste a mim.

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