sábado, 4 de maio de 2013

A Irrealidade


Francisco Barroso
Maio 2013

O que parecia impossível aconteceu, mas é que aconteceu mesmo. A realidade dos últimos anos virou a minha vida e talvez a de alguns de vós também, de pernas para o ar. Para ser mais rigoroso, não foi a realidade, foram antes os sonhos que construí com a realidade anterior à destes tempos de agonia.

Uma vida tão bonita que eu tinha (e tenho), mas os sonhos, esses, desvaneceram-se. Converteram-se em pesadelo.

Aos 58, mais coisa menos coisa, reforma correspondente ao salário. Filhos criados, a construir o futuro deles. Uns bons anos em perspectiva para viver aquilo que os anglo-saxónicos designam de 2.ª life. Plantar umas árvores na minha Gardunha, visitar países onde não tive ainda possibilidade de ir, agarrar a vida com as mãos e fazer dela o que me desse na real gana.

A verdade é que a reforma está cada vez mais longe e o seu valor perspectiva-se cada vez menor. O salário, cada vez mais baixo. O trabalho cada vez mais: E o pior: os filhos sem futuro. Se isto não é um pesadelo é o quê?

Ontem ouvi o Passos Coelho e o Seguro. Deprimi. No dia 1 de Maio ouvi o Arménio Carlos e não entendi. Incapacidades minhas, admito. Mas eles também se mostram incapazes de aceitar a realidade. Refugiam-se num sonho, que é o deles, de onde se recusam a sair. O discurso do Arménio estava bem construído, mas ignora um aspecto da realidade por demais conhecido: o país está falido. O Passos e o Gaspar, cretinos do mais alto calibre, discursam como se a governação fosse um mero exercício de contabilidade e não houvesse pessoas reais pelo meio.

A minha Cristina anda arrasada. Já era para se ter reformado o ano passado. Vai lá vai. Os educandos cada vez mais difíceis, cada vez menos atentos, cada vez menos respeitadores. São o reflexo perfeito da modernidade líquida, um tempo de mudanças e movimentos constantes, onde nada solidifica, tudo é instável, fragmentado e disperso, determinado pelo curto prazo e pela incerteza permanente, como a define Zygmunt Bauman, um dos grandes pensadores do nosso tempo.

Depois, aqui para nós que ninguém nos ouve, eu penso que ela, aliás como a maioria das professoras, deve ter uma paixão platónica pelo Ministro da Educação. É que chega a casa depois de um dia de trabalho e antes do jantar e depois do jantar ainda se agarra ao computador, a preencher fichas de alunos, a fazer relatórios, a fazer avaliações. Chega a trabalhar 10, 12 horas por dia em certas alturas e acho que há muitas assim. Há algum tempo, comentei isto com o Zé Teodoro e diz-me que a Idalina (a mulher dele) é igualzinha.

Acho que é por estas e por outras que agora falam de aumentar a semana de trabalho para as 40 horas. É que eles não são burros são é velhacos. Sabem perfeitamente que a maioria dos trabalhadores são de grande dedicação e profissionalismo, trabalham muito para além do que eles merecem, mas fazem-no pelo sentimento do dever. Fazem-no apesar da redução dos salários e da afronta permanente de que são alvo.

Completamente diferente deles e dos amigos que nomeiam para o desempenho de altos cargos. Veja-se o caso da gestão do Metro do Porto. Da Carris. Da Refer. Do BPN. O problema de Portugal, não é dos que servem o país, nas empresas ou no Estado, é antes dos que se servem do país e coberto de um quadro legal que só funciona numa direcção, apesar das leis deverem ser de aplicação geral e abstracta, nunca são responsabilizados pelo mal que lhe causam.

Mas já me estava a perder. Para além disto, a pobre da Cristina tem ainda de cuidar da mãe. Já incapaz de fazer coisas tão simples como tomar um simples duche. Imaginem o que será dar banho a uma versão menor do Colosso de Rodes (já há cerca de 20 anos o cardiologista Fernando Pádua lhe assegurou que o problema principal dela eram duas arrobas a mais). Ele é frente, ele é verso, é cabeça, é pernas, uma verdadeira estafa.

Confrange-se-me o coração de a ver assim. O trabalho, a mãe, os filhos, ela e eu, acrescendo a tudo isto que a minha mãe aos 90 anos ainda se recusa a ver-me como um simples pecador e me vê como um santo… e o esforço que isso me exige para não a desiludir.

Então, no jardim das oliveiras em que se tornou ultimamente a minha vida, tal como Cristo, tive uma revelação: o cálice deve ser bebido até à última gota. E percebendo que fui criado à imagem e semelhança de Deus, e que eu próprio sou um fragmento de Deus, como uma gota de água é um fragmento do oceano devo fazer meu, o seu exemplo: servir.

Se Ele na última ceia lavou os pés aos apóstolos, por que raio não posso eu sair da minha zona de conforto, do meu egoísmo, para tornar a vida dos outros mais tranquila e mais feliz?

Na verdade, o sacrifico só é doloroso antes de compreender esta realidade. Todos os homens venerados. Aqueles que mais admiramos, transmutaram o serviço aos outros de sacrifício, no prazer do altruísmo.

Estou quase lá ou não estou? E sinto-me melhor…

7 comentários:

  1. Tremenda chapelada Francisco, nem sei se não te vou magoar?

    O país dos brandos costumes, governado pelo do 'bloco central' (PS-PSD-CDS), que é um só partido. Iludem-nos com este arrufes de virgens ofendidas para continuarem na senda do controlo total do aparelho de Estado e da total dependência dos bancos e dos grandes grupos económicos (todos saídos do Estado). Esses 'spots' continuam inacessíveis, à transparência, à justiça e ao escrutinio democrático. Estão totalmente blindados pelos lacaios da finança (António Borges, Carlos Moedas, João Moreira Rato - o último delfim, com véu de virgem e raminho de laranjeira na lapela!) e por um grupo de comentadores que constituem a linha avançada desta arquitectura para lançar os 'fumos' que marcam o ritmo político e garantem a inacessibilidade aos verdadeiros temas sobre a razão (permanente) da crise portuguesa: os grupos de interesse do 'bloco central', ou seja a panaceia do regime, que eleição após eleição, "muda as moscas e deixa sempre a mesma merda".
    Não podemos alinhar em lavagem de roupa suja entre sujeitos. Queremos é saber como consolidamos um regime livre de interesses. Eu tenho três pontos e não arredo deles:
    1- Criação de círculos uninominais - para uma democracia mais directa e participativa e para evitar que um relvas chegue a ministro sem os cidadãos se darem conta que foi deputado e já é reformado;
    2 - Criminalização do enriquecimento ilícito - para que Dias Loureiros, Isaltinos, Socrates, Varas, Cavacos, Jorge's... tenham que dizer como adquiriram "parelhas, quintas e montes...", sem rendimentos declarados que os justifiquem?
    3 - Inversão do ónus da prova para crimes financeiros e fiscais - para que os senhores do BPN, não se possam esconder atrás dos atavios processuais da justiça, ainda por cima, utilizando o dinheiro que nos roubaram...

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  2. Brilhante comentário Francisco!
    Que fazer a pessoas que roubam aos pobres para dar aos ricos e que enriquecem à custa do sofrimento de milhões?
    Malditos políticos corruptos e seus amigalhaços que sugam o sangue do povo! Não me apareçam à frente, pois teria de responder pelos meus atos diante dos que, indignamente, dizem defender a lei!Malditos!

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  3. Excelente texto, Francisco.
    Acompanho-te, Vitor. Relativamente aos "comentadores" que referes, cada vez mais me convenço de que somos uma cambada de néscios: todos os dias o inventário das causas da nossa miséria e o receituário das mezinhas que desanuviariam o horizonte dos nossos filhos estão à distância de um microfone fixado a escassos centímetros da sapiência de um Mendes, de um Sócrates, de uma Leite, de um Coelho, de um Sousa... Que desafortunados fomos por os mesmos não terem tido responsabilidades políticas/governativas nos últimos 20 anos!; parafraseando a outra, parvos que somos por não aproveitar tão magníficas soluções! Como qualquer perdulário, só temos o que merecemos.

    Abraços

    Nicolau

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  4. O meu primo Chico Barroso escreve de forma correcta, clara e atractiva, graças a uma espécie de grandiloquência, a recorrer sempre aos maiores valores do Homem. Escrita, à qual imprime uma riqueza filosófica que lhe é própria. É um conhecedor do passado e um observador da actualidade, alertando-nos para as questões sociais colectivas. Mas também é fácil revermos-nos nas suas inquietações pessoais e da sua família mais nuclear.
    Um abraço, Chico.

    Zé Barroso

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  5. Primo Zé Barroso , é um poder que o meu tio tem cá na terra ....
    Tio Francisco, gostei muitissimo.Quando andamos preocupados em manter o emprego para ter o que dar a comer aos filhos, acabamos a trabalhar muitas horas que nos tiram tempo para estar com eles, tempo precioso para educa-los... É como dizes, estão a tirar-nos tudo e a exigir cada vez mais.

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  6. Só hoje li o texto do "nosso" Francisco Barroso!

    Não tenho tempo nem jeito para retóricas, mas, caro amigo, agradeço-te estas palavras e a forma como as dizes. Adorei e digo-te que fiquei com um "nózito" na garganta!

    Abraço

    António Rui Barata

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  7. Francisco
    Li, reli e gostei!!!
    A maneira como transportaste através da escrita a realidade dos dias de hoje e, com o sentido de humor que tão bem te caracteriza, a realidade dos sonhos destruídos de tantas famílias que, como a tua, como a minha, se "desunha" para construir algo de valor que, num de repente lhes é retirado. No que diz respeito ao futuro dos filhos...isso nem quero falar que, até se me dói a alma...incerteza total!!!
    Sinto que não pertenço aqui mas...pertenço! É como tu dizes e muito bem, o cálice deve ser bebido até à última gota!!!
    Escreve, continua a escrever.

    Fernanda Grilo

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