sábado, 29 de janeiro de 2011

O Zêzere escondê-las-à para sempre


José de Jesus AMARO

Imagino as lágrimas choradas pelo João, nas encostas tristes do Esteiro, a engrossarem o nosso Zêzere lá ao fundo. As retidas, essas ficarão para sempre sepultadas na sua alma, mesmo que ele as conte e as revele... sempre restarão algumas impossíveis de contar, pois a dor é indizível por mais que a tentemos revelar, explicar e traduzir. Para a dizer não há recursos suficientes! Porque ela não se deixa esgotar na razão ou nos sentimentos. Ela é corpo, mas também é alma. É carne, mas também espírito. Certo, certo: uma vida dura e um futuro nebuloso, escuro e sombrio esperam o João, que não conheço, mas cuja dor sinto profundamente.
Há vidas e vidas! E algumas, não se sabe bem porquê..., são uma contínua tragédia, umas vezes mais visível outras mais escondida e silenciosa. Mas está lá, omnipresente sob a forma de dor, e a qualquer momento, de tão intensa, transforma um corpo e uma mente num caos de ideias, ódios, vinganças, receios, lágrimas, tristezas, desesperos, impotências, confusões. A do João foi, é e será: aguda, calma, revoltada, insuportável, desesperante, pesada, leve até, mas não foge nem o abandonará, por mais que ele queira e mereça libertar-se dela, por mais que a exorcize e a racionalize... segui-lo-à como a sua sombra. Com pulseira ou sem pulseira, com arrependimento ou sem arrependimento.
A dor vai carregá-la, o João, pelos anos fora. Muitos, poucos... quem o sabe? Cravada nos ossos e escondida nos interstícios da alma ela passou a ser ser do seu ser, corpo do seu corpo, alma da sua alma. E não há como fugir-lhe. Ele tentou, antes, mas só a conseguiu afugentar... e logo da maneira mais trágica, pois a almejada libertação só a veio aumentar ainda mais... a que já carregava e tanto lhe pesava.
Não se andam vinte quilómetros a pé, descalço, alta noite... para ir dizer às autoridades que se matou o pai à catanada, se não houver um grande drama interior  com antecedentes mais ou menos visíveis ou mais ou menos escondidos e silenciados por “conveniência” de todas as vítimas... que são mais, para além do pai (morto), do João... há também a mãe e os irmãos.
Choro com o João sentindo a dor insuportável que carregava e a qual ele não podia gerir com apenas 16 anos. Diariamente, ela lá estava ao amanhecer (não guardando domingos nem feriados) ... e ao anoitecer tornava-se ainda mais insidiosa, fina e palpável, quando se apoderava do corpo e da alma deixando-os num completo desassossego e confusão. E foi ela que inspirou a libertação através da vingança, do ódio e da raiva, há tanto tempo contidos, escondidos e silenciados nas esquinas duma adolescência ingrata, pobre e amargurada... na qual a alegria e o sabor das cerejas fora substituído pela tristeza e o sabor amargo do fel.
E a nossa Beira, que é baixa, triste e solitária ficou ainda mais triste e mais só, olhando-se e olhando o mundo pelo crivo da dor ... e da desgraça.

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