quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Heterodoxias 2 (III)

Nicolau Marques
De acordo, amigo Zé. Em quase tudo. 

Na verdade, se a dificuldade (que partilhamos) em afirmar de modo categórico que houve uma descristianização da sociedade (que pode ser sustentada pela constatação de, ainda assim, apesar de os templos estarem mais vazios, serem hoje encontráveis mais "franciscos", "amélias" e “joãos” [… ou será “joões”? :)] do que há uma ou duas gerações, quando os manos Amaro não achariam facilmente, como agora, álibi no providencial anonimato gerado pela azáfama das vidas para justificar as suas incompatibilidades) nos aproxima, talvez nos afaste a apreciação que fazemos do carácter formal e exterior das manifestações religiosas: para ti, um possível indício de farisaísmo; para mim, talvez, sobretudo, as reminiscência de uma alma comum que não se quer apagada ou, o que dá no mesmo, a demanda de uma formalidade sem a qual qualquer conteúdo se esvai na implacável voracidade do tempo. Parafraseando o velho Kant sobre as fontes do conhecimento, diria que formas de religiosidade sem conteúdos (compromissos concretos) são vazias mas que estes sem o invólucro de uma ritualidade que sugira intemporalidade são cegos.
A título de exemplo, permite que te descreva um método eficaz para esvaziar uma igreja. Claro que se trata de uma apreciação meramente empírica, como o serão todos os recursos de quem não se encontra pastoralmente habilitado nem é cientificamente capaz e, portanto, dificilmente resistirá a um adequado exame crítico. Ainda assim, considera-o como possibilidade (… combinando-o com as tais razões acessíveis já ao simples iniciado nas ciências sociais). Ponha-se à frente de uma comunidade paroquial que enchia uma igreja três vezes em cada domingo um pastor que mobilize o melhor das suas energias (feitas de “garra evangélica” no verbo e chicote anti-vendilhão na mão) para em cada homilia desancar na “falta de autenticidade” dos baptizados que têm a coragem de transpor as portas para “assistir” aos serviços litúrgicos, o descaramento suficiente para inscrever os seus rebentos na catequese e a distinta lata de nos dias festivos (primeira comunhão, por exemplo) providenciar, se não um banquete, pelo menos um rancho melhorado após a cerimónia para que aprimoraram os meninos com laçarote e as meninas com vestido branco e florzinha no cabelo. Para ficarem melhor na foto? Por certo. Ou, quem sabe, porque essa exterioridade, essa formalidade, ainda que secundária, é o catalisador de uma pertença que se ancora numa memória de ritualidade festiva, grata e bela – não necessariamente na manifestação desse tremens que justificaria, segundo Rudolf Otto, a persistência de uma consciência do sagrado. A prazo esse mesmo pastor recomeça as suas invectivas - combate em que o adversário é agora, porém, a parca “audiência”. Mas nem ele percebe que o seu continuado esforço de apartar a elite de dignas ovelhas dos intrusos cabritos foi eficaz: estes, finalmente conscientes da sua indignidade, como os juízes do povo incapazes de atirar a primeira pedra, houveram por bem debandar de um meio onde mais sensato – e evangélico – seria serem, mais que ninguém, acolhidos, quais indigentes das ruas no banquete para outros preparado.

Aquele abraço.

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