José Antunes Cerdeira
Salgueiro (Três Povos) – Fundão. Ano de 1972. Sala de aulas do 4º ano.
O Padre Lúcio visita a minha escola primária e pergunta se alguém quer ir para o seminário do Tortosendo. Não tinha falado com ninguém acerca do assunto; levantei o braço e respondi afirmativamente.
Alguns meses mais tarde, finais de 1972, iniciei uma grande aventura: ingressei no SVD - Tortosendo.
Tímido e introvertido, muito ligado à família, rapidamente me tornei um alvo fácil para os “valentões”. Não jogava bem “à bola” e nunca fui suficientemente corajoso, fisicamente, para andar à porrada. O facto de ser, relativamente, bom estudante, em nada abonava a meu favor; penso, até, que isso provocava a ira dos “valentões” e era mais um motivo para ser massacrado. Hoje, dir-se-ia que fui vítima de “buling”.
Numa das deslocações que uma equipa de psicólogos fazia anualmente ao seminário, a uma pergunta sobre se já tinha pensado, alguma vez, em suicídio, respondi afirmativamente. Os resultados dos testes psicológicos indicavam uma personalidade apática e amorfa. Sentia-me indefeso, sozinho, no fundo do poço.
Algum tempo depois, provavelmente ao ter acesso aos testes, o Padre Soares conversou comigo. Pelo menos desde então, senti sempre a sua presença, atenta e vigilante, protectora e incentivadora: “Força, vais conseguir que eles te respeitem”.
Em surdina, ou através de simples olhares, a mensagem era sempre a mesma: “Força, tu consegues”.
Quando as férias terminavam e tinha de regressar ao seminário, chorava copiosamente. Ao longe, quando começava a avistar o enorme casarão (seminário), o meu coração apertava. Sabia o que me esperava. Nunca contei em casa o que passava e nunca disse aos meus pais que não queria andar no seminário.
Assim foram os meus primeiros anos de seminário.
Pouco a pouco, a realidade foi mudando …. Os resultados dos testes psicológicos já apontavam para um outro tipo de personalidade, e até passei a ser convocado para a selecção de futebol do seminário.
Desses tempos, para além da omnipresença do Padre Soares, recordo, com saudade, para além de mais dois ou três, o meu grande amigo: António Baptista (S. Jorge da Beira). Obrigado, Baptista (também pela coragem de teres aceite ser amigo de alguém que era o último do ranking da turma).
Passados cinco anos no Tortosendo, rumo a Fátima. O meu único prefeito – Padre Soares – acompanha-nos.
Adorei os dois anos passados no seminário de Fátima, na companhia do Franco, Lúcio, Zé Maria, Nicolau, Albino, Zé Manel, “Pisco”, Zé Prazeres, Tó-Rui, Victor Ramos, ….
Estava convicto de que a minha vocação era ser sacerdote.
No segundo trimestre do antigo 7º ano (actual 11º ano), quando questionados sobre a nossa intenção de prosseguir, ou não, a caminhada para o sacerdócio, sem saber bem porquê, a dúvida, sobre qual o caminho a percorrer, começou a assolar-me.
Foram dias muito difíceis. O caminho mais fácil era continuar. Disso não tenho dúvidas. A maior parte dos amigos ia prosseguir e eu fora educado, pelo menos desde os dez anos, para seguir tal caminho. No seminário, sentia-me como peixe na água. Nessa altura, inúmeras vezes, à noite, sozinho, dirigi-me ao Santuário de Fátima. Pedi imenso a Nossa Senhora que me indicasse o caminho.
Mas, o argumento que me assolava era sempre o mesmo: viveste sempre no seminário, a decisão de prosseguires não é uma decisão em total liberdade.
Não conhecia o mundo cá fora. Senti necessidade de vir ver como era. Duvidava, também, que tivesse qualidades suficientes para estar à altura de assumir a responsabilidade de ser sacerdote. Ainda hoje não sei se foram desculpas que arranjei para mim próprio ou se foi falta de coragem. Saí com a convicção de que voltaria.
Na hora da despedida, duas palavras do Padre Soares: “Se quiseres voltar, a porta está aberta. NUNCA DEIXES DE SER QUEM ÉS”.
Estas últimas palavras ainda hoje ressoam no meu quotidiano.
Os primeiros tempos fora do seminário foram muito difíceis. Sentia-me como um peixe fora da água. Sentia-me um ser um pouco diferente dos demais. Sem saber muito bem o que queria, fui tomando decisões (quase sempre solitariamente).
Sempre acreditei que alguém guiava os meus passos.
Prossegui os estudos mais alguns anos.
Inicialmente, mantive-me muito próximo da Igreja. Todavia, à medida que me ia distanciando, senti necessidade de procurar algumas respostas. Não as encontrei e a participação nos ritos religiosos passou a ser menos frequente.
Tenho uma carreira profissional. Entretanto, casei e tenho dois filhos.
A responsabilidade de educar estes, levou-me a uma reaproximação da Igreja. Senti, então, a alegria da redescoberta do caminho. O regresso às origens fazia todo o sentido. Hoje, sou dirigente do Corpo Nacional de Escutas – Agrupamento do Fundão (José Amaro, o lema do Agrupamento para o corrente ano escutista é: “Deus, Pão e Ternura”. Se tivermos de pagar direitos de autor, pagamos … não sei é quando).
MUITÍSSIMO DO QUE SOU, DEVO-O AO PADRE SOARES.
Para mim, não é possível falar do seminário sem falar do Padre Soares. O seminário “confunde-se-me” com o Padre Soares.
A seguir à minha mãe, o Padre Soares foi o adulto mais importante para mim, no período compreendido entre os dez e os dezoito anos.
Mais, ainda hoje, passados cerca de trinta anos, o Padre Soares é uma das pessoas mais importantes na minha vida. Ainda hoje, sinto, de uma forma muito forte e viva, a sua presença.
Durante anos a fio, raros foram os dias em que, quotidianamente, o Padre Soares não me visitou nos meus pensamentos.
Após sair do seminário, durante bastante tempo, receei reencontrá-lo. Tinha medo que tudo tivesse mudado e que algo pudesse manchar as boas recordações, as imagens, as palavras, os sentimentos ….
Mas não. O Padre Soares continua igual a si próprio e eu, seguindo o seu conselho, não me envergonho de ser quem sou. Continuo muito igual ao que era, esforçando-me, cada dia, por tentar ser um pouco melhor.
Obrigado, muito obrigado, Padre Soares.
Para terminar, uma nota final e uma questão para ponderar:
- O seminário não representou um percurso fácil para muitos de nós e é preciso ajudar esses a fazer o reencontro positivo com o passado.
- Na nossa vida damos testemunho de fé e mantemo-nos fiéis às nossas origens e vivências? Ou isso é coisa do passado?
Sinto meu orgulho em dizer que andei no seminário. Cada vez mais, sobretudo quando consigo que o meu testemunho de vida seja condizente com tudo o que o seminário representa, em termos de valores e de caminho de vida.
Um fraternal abraço para todos os verbitas.
Fiquei muito contente com o que acabei de ler e não posso deixar de fazer o meu comentário:
ResponderEliminar1º Para dar os parabens ao José Cerdeira, que não conheço pessoalmente, pela simplicidade, coragem e clareza com que narra os factos.
2º Por se referir a um amigo e colega do meu curso, que também muito aprecio desde esses tempos e que foi pioneiro em algumas iniciativas já naqueles anos de 1958-60 como a criação e orientação de um Grupo com o nome " Mundo Melhor ".
3º Fico contente por saber o impacto do Pe. Soares na orientação e atenção sobre os jovens que tinha ao seu cuidado.
É bom ouvir isto dos amigos e saber que são úteis aos outros.
Finalmente, disse-me muito a pergunta formulada no final: - Na nossa vida damos testemunho de fé e mantemo-nos fiéis às nossas origens e vivências? Ou isso é coisa do passado?
Para mim é esta a pergunta mais importante à qual cada um pode responder por si e que realmnete me preocupa, pois penso ser nossa obrigação sermos desinteressadamente, luz, sal e fermento para os outros com Jesus no centro da nossa vida.
um abraço amigo
Augusto Martins da Silva
Eu, o Francisco Barroso e outros amigos estávamos, em amena conversa, junto à escadaria que dá para a piscina.
ResponderEliminarChegou um forasteiro, jovem-adulto, mediano, magro, de mochila às costas, e disse: "Pe. Soares".
Estranhámos e o Chico respondeu: "Não há aqui nenhum Pe. Soares."
"Eu sou o Pe. Soares."
Foi bom o José Cerdeira ter recordado, neste nosso espaço comum, o trabalho do Pe. Soares.
Homem pragmático, chegou ao Tortosendo na altura certa. Só trabalhei com ele no teatro, mas tinha sempre uma palavra de jovial amizade para todos os alunos.
Foi de mestre, a forma como ajudou o Cerdeira a combater o bullying a partir de dentro de si.
Um abraço para ele.
Bem aparecido, Zé Cerdeira!
ResponderEliminarAo fim de 31 anos, é bom reencontrar-te segunda vez. No Inverno passado, em Oleiros, as abundantes cãs que ambos exibimos já, sugeriam a subsistência de uma outra simpatia; agora, o teu tocante texto confirma a partilha de um mesmo sentimento quando revisitamos espaços e pessoas que transportaremos sempre connosco.
Reconheço apenas o segundo Cerdeira; o primeiro nunca se denunciou no rapaz da gargalhada fácil, gutural e cheia ou no colega que, com sentenças lapidares sopradas numa voz sibilante formatada no Salgueiro dos Três "Póvo-je", resolvia com fina ironia e apurado humor as situações que se afigurassem mais embaraçantes.
No início desse biénio (77-79) em que crescemos juntos sob a orientação atenta e amiga do P.e Soares, fui eu um dos "calimeros". Certo é que os resultados escolares não me desmereciam e que a minha guitarra era uma das melhores; contudo, era sempre dos últimos a integrar qualquer equipa de futebol e raramente era convocado para a passeata que terminava com a reposição dos níveis de cafeína no Sto Agostinho. Claro que a completa ausência de pilosos caracteres masculinos na face, não me era favorável; ainda assim, o facto de pertencer ao reduzido número dos indígenas de Fátima - que os novos, numerosos e desenvoltos colonos oriundos da Beira e do Minho situavam na escala humana ligeiramente acima do neanderthalensis - era o principal obstáculo...
Depois, após uma muito bem sucedida passagem pelo CEF e uma crise de crescimento que, também para mim, foi dolorosa, estranhamente, na altura, ficaste para trás. Ou melhor, adiantaste-te: também eu, pouco depois, sairia.
Os nossos caminhos voltam a cruzar-se, como os de dezenas de outros ex-colegas e amigos cujas vidas seriam diferentes sem o cimento do ambiente verbita; mais pobres seriam, seguramente, sem a presença de homens como a do P.e Manuel Barbosa Soares.
Um abraço dos antigos
Nicolau
Há sensivelmente um ano, quando do jantar com o Pe. Lúcio (no qual não pude participar por ter sido operado nessa altura) escrevi algumas palavras neste blog e disse, então, que em futura ocasião escreveria sobre o Pe.Manuel Soares. O tempo foi decorrendo e fui adiando esse propósito. Felizmente, o José Cerdeira escreveu este lindo e sentido texto onde recorda a sua passagem pela SVD e no qual nos transmite a sua enorme gratidão para com o Pe. Soares.Também os comentários que têm sido escritos demonstram quão importante foi, para muitos de nós, o Pe. Manuel Soares. O texto do Nicolau até me fez chorar de riso quando fala do Calimero, do Sto. agostinho e, é claro, dos desenvoltos colonos! Só o Nico...
ResponderEliminarPara mim, também o Pe. Manuel Soares foi crucial na minha vida. Tinha decidido sair no final do 5.º ano, mas os exames na Covilhã não correram como esperava e lá fiquei a "marcar passo". Nesse ano de repetência apanhei o Pe. Manuel Soares como Prefeito e... tudo mudou. Motivou-me, apostou em mim (até para o teatro...) e no final do ano só tinha sentido continuar, com a motivação extra de que era ele que nos acompanharia para o 6.º ano, em Fátima. Aí tudo continuou, ainda de forma redobrada, e sair nem me passava pela cabeça. Recordo que, através de familiares, me foi oferecido um apetecido emprego logo que terminasse o 7.º ano, mas nem hesitei, queria continuar o meu caminho na Congregação do Verbo Divino. Infelizmente, não nos acompanhou para Lisboa (que me desculpem os sacerdotes que aí nos acompanharam, nomedamente o Pe. David Sampaio, do qual guardo as melhores recordações, mas... não era a mesma coisa!!!). Faltava o dinamismo e aquela motivação que só o Pe. Manuel Soares conseguia transmitir. Saí terminado o 3.º ano de Teologia (depois de, após o 2.º ano, ter feito um, inesquecível, ano de estágio em Guimarães). Por vezes, dava comigo a pensar "será que as coisas teriam sido diferentes se o Pe. Manuel Soares me tivesse acompanhado?". É uma pergunta sem resposta, mas, o importante, é que a semente foi lançada na minha vida e, na medida do possível, tenho tentado preparar o terreno para que a semente possa gerninar, crescer e dar bom fruto. Na sequência do que diz o José Cerdeira, também eu me sinto lisongeado por ter tido oprtunidade de ter vivido o espírito verbita e não há colega ou amigo que não conheça a minha enorme gratidão pela Congregação que me acolheu, formou e muito contribuiu para que eu seja uma pessoa realizada e feliz, quer pessoal quer profissionalmente. Obrigado Cerdeira por me teres proporcionado dizer estas palavras.
Tó Rui Barata
Não conheço o J.A. Cerdeira pessoalmente. Entrei no Tortosendo 8 anos depois, mas escrevo só para dizer o quanto gostei de ler as suas palavras e as palavras do que o comentarm. Que agradavel é 'ouvir' vozes tão sábias...
ResponderEliminarQueria comentar a seguinte frase: "O seminário não representou um percurso fácil para muitos de nós e é preciso ajudar esses a fazer o reencontro positivo com o passado.". De vez en quando encontro AAVD que sairam da mal com o seminário ou com algum superir... O voltar ao passado e fazer um reencontro positivo com o que vivemos é das experiencias mais libertadoras que podemos ter. Tenho encontrado no SABOR DA BEIRA essa experiencia...
Também na minha vida o Pe. Soares teve a sua pegada... Entre os anos 89 e 94... Foi um grande companheiro às vezes não muito compreendido. Na minha vida actual lembro-me dele como um exemplo de uma pessoa mais velha que nos quer ensinar algo e que nós nem sempre estamos disposto a receber...
Obrigado Pe. Soares e J.A. Cerdeira.
Bem haja SABOR DA BEIRA
Tó Natário
O Pde. Soares foi, sem dúvida, determinante na vida de muitos de nós. No que fomos e no que somos!
ResponderEliminarO texto do Zé Cerdeira, colega de turma durante 5 anos, reflecte isso mesmo, de forma extremamente tocante. Enfim, numa casa com mais de 200 "putos" entre os 10 aos 18 anos, com origens, personalidades e níveis de desenvolvimento bastante diferentes, estes fenómenos seriam inevitáveis. Tb eu não era dos mais extrovertidos (antes pelo contrário...), e recordo a forma como o Pde. Soares minimizava pequenos conflitos, aproximava colegas com personalidades quase antagónicas e "puxava" pelos que tinham mais dificuldades de integração. Enfim, aplicava já as modernas técnicas de "team work"...
Continua hoje com a mesma dinâmina, num contexto diferente, pelo que pude constactar na recente Cerimónia do 60º Aniversário do Seminário!
Participei o ano passado, pela 1ª vez, no Encontro Anual de Antigos Alunos. Uma das razões que me levou a voltar "a casa" foi exactamente para ter o prazer de o rever. No reencontro, fiz-lhe uma pequena partida e não me identifiquei. Tinha 15 anos quando saí e decorreram, entretanto, 33 anos. Aceitando o desafio, depois de uns pensativos instantes, disse: "és o Mateus!". E era mesmo...
Obrigado Pde Soares!
Um abraço.
Fernando Mateus Carvalho
Bom... só vos tenho a dizer! Afinal sempre é bom "penar umas horitas" agarrado a isto e passar uns dias desiludido a olhar para as fracas estatísticas de visitas!
ResponderEliminarAo "pilantra" do Cerdeira quero dizer que há momento que nos fazem bem a todos, não só a ti!
Obrigado!
vítor baptista
Caro Cerdeira parabens pelo texto e pelas imagens que consegues descrever levando a que qualquer um de nos se reveja um pouco nesse pequeno mundo que foi partilhado por todos nos no seminario.Concordo em pleno contigo quando defines o P. Soares como sendo sem duvida o melhor formador e a pessoa que mais estava preparado para lidar com toda a nossa irreverente juventude.Como tal foi aquele que mais me marcou positivamente nessa minha fase.
ResponderEliminarUm obrigado a ti por recordares e fazeres recordar-nos a importancia dele nas nossas vidas.
Um muito obrigado ao P. Soares por ter caminhado ao nosso lado.
Artur Pizarro
Por vezes, venho até aqui... faz-me bem!
ResponderEliminarQuando tudo à nossa volta parece ruir (...o país, os valores, a palavra, a confiança...) as tuas palavras inspiram-me esperança!