Nicolau Marques
Ao ouvir a intervenção do nosso Daniel Reis no último encontro (que, curiosamente, não está longe das respostas que eu próprio dei às perguntas do convidado e bem aparecido António Colaço) lembrei-me da sábia cautela ditada por Michael Oakeshott : A conjunção do sonho com o poder degenera necessariamente em tirania.
Por certo, o motivo da tão lapidar sentença deste pensador desaparecido há 20 anos, e que alicerçou o seu cepticismo em relação aos esquemas metafísicos abstractos tão do agrado do idealismo racionalista continental nos ensinamentos da tradição e na sensatez do empirismo britânico, é o rescaldo das trágicas aventuras políticas ensaiadas pelos europeus no séc. XX, a partir, por exemplo, de Berlim, de Roma, de Moscovo. Na verdade, propõe o céptico inglês, a ideia de que todas as associações deverão ter um carácter instrumental (providenciar e gerir meios em vista de um fim previamente determinado) não só não faz justiça à associação civil - propriamente, “respublica” (…nada de confundir com os delírios românticos impostos por meia dúzia de burgueses de cartola há 100 anos cá no reino, tanto mais que a monarquia pode e deve ser uma “respublica”) - como tem o efeito perverso de alimentar os mais trágicos devaneios colectivos: seja em vista de um fim económico, político, moral, religioso, étnico. A associação civil não será, por conseguinte, um elenco de objectivos substantivas (concretos, identificados, definidos) mas apenas um quadro de referência adverbial capaz de legitimar (ou inibir, claro) a miríade de incontornáveis propósitos individuais.
O “Sabor da Beira”, em boa hora gerado pelo nosso Bito-Que, como nele me entendo (e se nele bem me entendo, obviamente) retira toda a sua virtualidade desse seu carácter adverbial e não substantivo. É uma associação civil, afinal. Que visa o “Saber da Beira”? Nada em concreto e tudo o que cada um dos seus membros quiser: a satisfação do reencontro periódico passadas décadas (… e que nele se esgotará); o relembrar de momentos gratos da adolescência; a catarse de pequenos traumas que os anos, ainda assim, não puderam resolver; a satisfação de ouvir de condiscípulos o louvor a mestres que nós próprios não soubemos fazer; a mobilização para o arranjo de um telhado; a dissertação sobre a secreta proveniência do medronho que o Fernando, mais uma vez, providenciou; o humor sadio a propósito do avanço desta calvície ou daquele abdómen; a azáfama do Pinto para que as quotas e listas da AAVD fiquem em dia; os cantares desgarrados enquadrados pela concertina do Freire; a proposta de reunir as criações musicais de alguém entretanto desaparecido; a comparação da entremeada que agora se degusta com o naco de vitela que há dois meses se apreciou; etc. Pouco, portanto. E, todavia, muito: determine-se uma meta que a comprometa substantivamente e, a prazo, será uma associação do passado. Mais uma. E dessa ameaça nos quererá prevenir o avisado Daniel.
N.M.
Nunca te ouvi falar (escrever) tão bem, Nicolau.
ResponderEliminarFico contente por te conhecer e poder confraternizar contigo de vez em quando, pelo puro prazer que há no reencontro.
A tua lucidez tocou-me.
Um abraço
f. barroso