Com um abraço p/ o Nicolau !
1.Eu conheci um sr. chamado José Amaro (meu avô e padrinho). Ele só tinha um irmão chamado António. O meu avô era uma pessoa religiosa (missa dominical, quando havia no Violeiro, confissão e comunhão anuais (pela Páscoa da Ressurreição), pagava a côngrua e tocava as avé-marias, pela manhã e à tardinha... etc...). Durante 40 anos o meu avô e o irmão não se falaram, devido a desavenças que não importa relatar. Quando se cruzavam, mudos e surdos que não eram, cada um olhava para um lado diferente de modo a que se não cruzassem os olhares... Aquilo impressionava-me!
2.Estou de acordo contigo quanto à afirmação, pura e simples, de que se terá verificado uma “descristianização” nas últimas décadas ser problemática. Mas se olharmos esta mesma sociedade pelos números (aqui na Europa) teremos de reconhecer que efectivamente ela aconteceu. Claro que não vou elencar os factores que levaram a isso (deixo a tarefa para os caloiros de sociologia), mas se passarmos aos porquês talvez possamos, sem aplicação linear, apelar para alguns critérios evangélicos, que são verdadeiramente exigentes e dos quais prescindimos facilmente, sejam eles vividos mais individual ou mais comunita-riamente. Aliás, para mim os critérios evangélicos são sempre comunitários, porque exigem sempre um outro.
3. É verdade que se desvalorizaram e abandonaram muitas coisas ao longo das últimas décadas (sobretudo após o Vaticano II): gestos (sinal da cruz, genuflexão dupla em frente do SS.mo, água benta, comunhão na boca, liturgia em latim, véus sobre a cabeça, uso da casula, benção do ss.mo, incenso, etc...), palavras (orações e devoções particulares a todos os santos e santas...). Sobre as práticas litúrgicas mais vernáculas não penso que tenham sido elas a ter um efeito perverso de “desagradar e potenciar a individualidade”. Penso que até terá contecido o contrário... Aceito, para os que ainda anseiam por um deus = mysterium tremens, que lhes faça falta uma linguagem mais condizente, como por exemplo o latim.. Mas, para satisfação de alguns e tristeza de outros, estamos em fase de “recuperação”, pois o actual papa não só já o autorizou aos lefebvrianos, como deu instruções às dioceses para que, onde fosse solicitado, por um grupo de fiéis, se rezassem missas em latim. Outro gesto diz respeito à comunhão na boca que está em fase de recuperação (pelo menos em termos de proposta romana e de prática papal).
4. Quanto à identidade partilhada acho-a fundamental: mas não se pode ficar por aí, pelo menos a cristã. É preciso que tenha consequências, significado, faça sentido. Não me entusiasmam as multidões de Fátima (embora tenha por elas um enorme respeito), as Jornadas Mundiais da Juventude, as Bençãos dos Caloiros etc... São, na sua maioria, mero folclore... que não deixa nada a não ser umas fotos ou uns vídeos. Se não levam a um compromisso e a gestos concretos não passam de manifestações farisaicas para família ver e clero rejubilar. É preciso que ajudem o t´Zé Amaro a reconciliar-se com o irmão António; o Joaquim a perdoar ao Manuel; o Francisco a renunciar a um dos empregos em favor do Rafael, que está desempregado; e a Amélia a deixar de trabalhar em favor de outrém, porque já tem a sua reforma que lhe dá perfeitamente para viver, e levar o João a compreender que deve pagar os impostos, pois não o fazendo está a prejudicar a comunidade e a “ofender” o bem comum. Jj-a
De acordo, amigo Zé. Em quase tudo.
ResponderEliminarNa verdade, se a dificuldade (que partilhamos) em afirmar de modo categórico que houve uma descristianização da sociedade (que pode ser sustentada pela constatação de, ainda assim, apesar de os templos estarem mais vazios, serem hoje encontráveis mais "franciscos", "amélias" e “joãos” [… ou será “joões”? :)] do que há uma ou duas gerações, quando os manos Amaro não achariam facilmente, como agora, álibi no providencial anonimato gerado pela azáfama das vidas para justificar as suas incompatibilidades) nos aproxima, talvez nos afaste a apreciação que fazemos do carácter formal e exterior das manifestações religiosas: para ti, um possível indício de farisaísmo; para mim, talvez, sobretudo, as reminiscência de uma alma comum que não se quer apagada ou, o que dá no mesmo, a demanda de uma formalidade sem a qual qualquer conteúdo se esvai na implacável voracidade do tempo. Parafraseando o velho Kant sobre as fontes do conhecimento, diria que formas de religiosidade sem conteúdos (compromissos concretos) são vazias mas que estes sem o invólucro de uma ritualidade que sugira intemporalidade são cegos.
A título de exemplo, permite que te descreva um método eficaz para esvaziar uma igreja. Claro que se trata de uma apreciação meramente empírica, como o serão todos os recursos de quem não se encontra pastoralmente habilitado nem é cientificamente capaz e, portanto, dificilmente resistirá a um adequado exame crítico. Ainda assim, considera-o como possibilidade (… combinando-o com as tais razões acessíveis já ao simples iniciado nas ciências sociais). Ponha-se à frente de uma comunidade paroquial que enchia uma igreja três vezes em cada domingo um pastor que mobilize o melhor das suas energias (feitas de “garra evangélica” no verbo e chicote anti-vendilhão na mão) para em cada homilia desancar na “falta de autenticidade” dos baptizados que têm a coragem de transpor as portas para “assistir” aos serviços litúrgicos, o descaramento suficiente para inscrever os seus rebentos na catequese e a distinta lata de nos dias festivos (primeira comunhão, por exemplo) providenciar, se não um banquete, pelo menos um rancho melhorado após a cerimónia para que aprimoraram os meninos com laçarote e as meninas com vestido branco e florzinha no cabelo. Para ficarem melhor na foto? Por certo. Ou, quem sabe, porque essa exterioridade, essa formalidade, ainda que secundária, é o catalisador de uma pertença que se ancora numa memória de ritualidade festiva, grata e bela – não necessariamente na manifestação desse tremens que justificaria, segundo Rudolf Otto, a persistência de uma consciência do sagrado. A prazo esse mesmo pastor recomeça as suas invectivas - combate em que o adversário é agora, porém, a parca “audiência”. Mas nem ele percebe que o seu continuado esforço de apartar a elite de dignas ovelhas dos intrusos cabritos foi eficaz: estes, finalmente conscientes da sua indignidade, como os juízes do povo incapazes de atirar a primeira pedra, houveram por bem debandar de um meio onde mais sensato – e evangélico – seria serem, mais que ninguém, acolhidos, quais indigentes das ruas no banquete para outros preparado.
Aquele abraço.
Nicolau Marques