segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Oleiros: 4º aniversário do Sabor da Beira


Em demanda da erva de Bogas

Daniel Reis

Serpão, a erva mágica!
O segredo da coisa está nas ervas, com ênfase na que o imaginativo Ismael define como ‘erva de Bogas’. Sem elas, os mágicos saquinhos de bucho confundir-se-iam com vulgar arroz de cabra. E jamais nos convocariam a um ritual sacrificial, como o que, juntos, perpetrámos no sábado 26, em Oleiros, com requintes profanos, que já vos conto. Mas antes há-que dar uma olhadela à preparação do pitéu, em paralelo com os trabalhos da convocatória, via Internet, para a reunião dos frequentadores do nosso blogue (4º aniversário do Sabor da Beira), no novíssimo hotel Santa Margarida, no lugar da Torna, encostado à ribeira de Oleiros e à entrada da vila do mesmo nome.
A logística exigia saber, primeiro, com quantos contar e disso se encarregou o Vítor Batista,  gestor e mentor do blogue. Como ponto de partida, sabia-se que no jantar inaugural, em 2009, éramos 20 mas, ao almoço do 1º aniversário, já em Oleiros e num restaurante à beira do campo da bola, atingimos o número extraordinário de 62 amigos á mesa. Já então, muitos respondiam ao chamariz agora repetido: a tal ‘coisa’ e um célebre cabrito estonado da região. Isto, claro, a somar às velhas amizades e camaradagens de adolescência, reforçadas pelo espírito verbita, que nos tem mantido próximos pela via fora.
Atendendo a que, no 2º e 3º aniversários, tivemos  42 e 43participantes, respectivamente, era de prever que cerca de meia-centena respondesse à chamada. E assim aconteceu.

Uma romaria de 52 almas

Boas vindas em "concertinês"
Quando no hotel se entrou numa fona, à procura dos ingredientes da ‘coisa’, já sabiam que teriam de saciar umas 52 bocas.Quanto ao peixe, achigã e savel, eles lá saberão que porções reservar por cabeça. E o mesmo se diga do cabrito, assado e estonado (um manjar dos deuses, sempre). Já quanto à ‘coisa’ (maranho à moda do pinhal), o único que lhes adianto é que a medida normal é de meio quilo de cabrito (ou cabra) para duas pessoas. O resto baseia-se na receita que aqui deixo, a benefício de quem quiser afinar o palato com os sabores das ervas da Beira e, porventura, não saiba o prazer que elas podem propiciar. Eis, pois, o mapa do tesouro, só quanto à matéria prima: ‘Um bucho grande de cabra ou de ovelha;1,5 kg de carne de cabra ou ovelha para 6 pessoas; 200 g de presunto; 200 g de toucinho entremeado; um chouriço de carne; 1,2 kg de arroz; dois dentes de alho; um bom ramo de hortelã; dois dl de vinho branco; dois dl de azeite; um limão; uma laranja; noz-moscada q.b. e sal q.b.’
Tudo isto foi reunido de véspera, como é da praxe, tal como os demais acessórios exigidos à comezaina. Ou seja, tesoura, uma agulha forte e linha grossa.
Lá pela hora em que o Hotel Santa Margarida cuidava desta logística, alguém batia Cascais à procura de uma carrinha, para nos precaver do balão da polícia e propiciar algum alívio na bolsa de cada freguês. E encontrou-a, como se verá. Outros, de Norte a Sul, reuniam instrumentos musicais para surpreender no dia seguinte, como o bombo de Ferraz de Moura (o sempre considerado Presidente da AAVD), e o rabecão do Zé Freire, feito nada menos que de uma lata vazia, um braço de madeira e uma corda. Isto sem falar das violas do Maurício, do Ismael, do Tiago e de nem sei quem mais.
Sábado de manhã estava de chuva e, devido à distância de Oleiros, a rapaziada de Guimarães e Porto (como o grupo musical do Madeira Antunes, o Ferraz, o Guimarães e o João Carlos Lourenço) teve de se levantar mais cedo. Por nós, um grupo de quatro casais de Lisboa e arredores, arrancámos pelas nove e picos e, mais uma vez, a solução da carrinha se revelou acertada. Para o atestar, transcrevo o que o Pinto me disse, no domingo à tarde e já de regresso à Parede: «Foi uma boa opção viajar em grupo e gostei dos companheiros de viagem. O Vítor merece a nossa consideração pelo esforço em conseguir a carrinha e por nos ter conduzido impecavelmente». Tributos sejam pois prestados a este cidadão, que além de blogguer emérito, também conduz feito profissional.
À medida que iamos chegando, entre as onze e a uma, o pessoal da cozinha procedia às operações intermédias, na preparação da ‘coisa’. E elas são morosos, exigem amor e carinho e estão descritas numa receita antiga: ‘Cortam-se todas as carnes em pedaços pequenos e colocam-se num recipiente. Tempera-se com sal, noz-moscada e vinho branco e mistura-se bem. Junta-se a hortelã picada, rega-se com um pouco de sumo de limão e deixa-se repousar durante uns minutos’.
Isto quanto ao manuseamento do recheio. Já para o seu envólucro devem dar-se, entretanto, os passos seguintes: ‘Coloca-se o bucho num recipiente e salpica-se com uma mão cheia de sal grosso. Juntam-se-lhe rodelas de laranja e de limão e esfrega-se bem pelo direito e pelo avesso. Para a qualidade do maranho é essencial utilizar-se bucho natural (apesar da ASAE) e não tripa sintética, que descaracteriza o produto. ‘Passa-se o bucho por água corrente e raspa-se com uma faca, também de ambos os lados, até se eliminarem todos os resíduos e gorduras. Corta-se em pedaços de tamanho semelhante, mais ou menos 10 cm de largura 15 de comprimento, que depois se cosem com linha e agulha, para formar saquinhos. Para terminar a preparação do recheio, deita-se o arroz num recipiente, rega-se com o azeite, mexe-se e mistura-se com as carnes, envolvendo bem todos os ingredientes. Se ficar seco, acrescenta-se mais um pouco de vinho. Com este recheio, enchem-se os saquinhos até um pouco mais de meio, deixando espaço para a dilatação do arroz, e cosem-se as aberturas com linha e agulha. Os sacos devem ficar bem fechados, para não lhes entrar água durante a cozedura’. Impõe-se, ainda, ‘que se deixe tudo a repousar umas horas (há quem o deixe de um dia para o outro), para que os sabores se misturem’.

Qual sesta? Só chinfrim!

«Ainda estão a repousar», responderam-me ao almoço, quando perguntei ao pessoal pelos maranhos. Essa era, porém, a hora de aviar as outras obras – todas excelentes – produzidas na cozinha do hotel. E era também o tempo de confirmar que o anfitrião, (uma vénia mais ao nosso querido Fernando Carvalho) não nos deixaria ficar mal quanto a vinhos. O Callum próprio da casa, e da região, é um branquinho suavíssimo e marchou muito bem. Como o Fortunato (de Canhoso, Belmonte) nos presenteou com uma dúzias de garrafas do tinto DoisPontoCinco, da sua própria produção, é caso para ningém pôr defeito. E não o pôs, de certeza.
À desgarrada!
Foi durante essas tais hora de repouso da ‘coisa’ que a festa seguiu tarde fora, no restaurante e no átrio do hotel, tudo por nossa conta. Aí, no que à maioria dos participantes diz respeito, quem falou de repouso? Só chinfrim. Que o diga eu. Ao tentar dormir uma sesta, fui sobressaltado pelo ribombar do bombo do Moura e das seis ou sete dúzias de concertinas, uma vez mais arregimentados pelo Madeira Antunes.
Eu gosto muito destes concertineiros minhotos e folgo de os ver em todas as nossas reuniões, tanto faz em Fátima, como no Tortosendo ou Guimarães. Mas não podiam ser menos, quem sabe, só dois ou três? Sempre lhes ficava mais em conta a deslocação.
Antes desta tarde de desgarradas, também houve lugar a um momento cultural, mais sério e engravatado.  O nosso colega Eduardo Rêgo, homem da televisão e dos programas da vida selvagem, apresentou-nos o seu documentário de estreia como produtor ‘Arrábida—da Serra ao Mar’. Magnífico, ainda mais por ter locução do próprio Eduardo, o qual, segundo um folheto distribuído na hora  ‘é, indubitavelmente, a Voz mais emblemática dos programas da Natureza´’.
O Trovador!
Escusado será relembrar que o violão (ou lá o que era…) artesanal do Freire fez sucesso, tal como o vozeirão do Maurício Melfe, depois do jantar, e a versatilidade do Tiago Silva para tocar concertina e cantar.
Mas estavam já eles meio cansados do folguedo – faltava aí hora e meia para o jantar, quando na cozinha se ouve a voz do Chefe: «Vamos lá, meninos, rematar a nossa obra de arte». Isto é: pôr o maranho em condições de ser levado à mesa.  E lá culminaram eles o ritual (aprendam, que eu não duro sempre):  Coloca-se uma panela ao lume com bastante água, juntam-se os couratos do toucinho e do presunto, um pouco de azeite, hortelã e sal. Quando começar a ferver, introduzem-se os maranhos e deixam-se cozer durante cerca de hora e meia. Escorrem-se e servem-se quentes, cortados às rodelas ou talhados em cruz, com um acompanhamento de legumes cozidos ou salada».

Arte e geografia do maranho

Aqui estão: Exmos Maranhos
Assim se fez e assim foram sacrificados à mesa, com todo o requinte. Nem ouso dar notas. Só admito, sem corar de vergonha, que comi por três. E dispensei o que quer que fosse de outras iguarias, excepto o branquinho da casa, complemento ideal à tal ‘coisa’, tantas vezes referida neste longo arrazoado.
Limpava eu, porém, os beiços, quando alguém me tocou no ombro, e segredou: «Na próxima vez, telefone-me de véspera, que eu preparo dois ou três com as nossas ervas de Bogas». Baixinho, também, logo retorqui: «Quanto lhe agradeço, Chefe Leonel».
O segredo desta conversa tem tradução rápida. É que, desta vez, nós comemos os maranhos do Pinhal Sul (concelhos da Sertã, Proença, Vila de Rei e Oleiros), cujo sabor de base é a hortelã. Lá mais para o Norte -- do Orvalho para cima (Bogas, Janeiro, Dornelas, Barroca e Silvares) -- até às portas da Cova da Beira, mistura-se a hortelã com o serpão,  uma planta aromática do género do tominho e que, essa sim, até engrossa a língua, de tão intensa. Há também quem lhes junte um pouco de salsa, para o festival de sabores ser completo. Como o era, quando a minha mãe nos regalava com essas primícias beirãs, lá pela Páscoa e na festa de S. Sebastião, de há tantos, tantos anos!

3 comentários:

  1. De tão real a narrativa do Dani,
    soube-me a boca a maranhos como se estivesse ali.
    Mas não é a mesma coisa, isso não. Faltaram-me as baladas do Mauricio, com aquela voz vinda de reconditos da alma em que só alguns conseguem entrar.
    francisco barroso

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  2. Excelente crónica do 4º aniversário do SB! A "pena" ainda está treinada, Dany! Nem parece de quem não faz "ponta de um c..." desde há uns tempos! Lindo...

    Só posso dizer que foi uma honra receber tão ilustres amigos, que tornaram esta efeméride num dia memorável! E fica ainda a garantia de que "aqueles" maranhos marcarão presença na nossa tertúlia bimensal. Prometido...

    Um grande abraço!

    fcarvalho

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  3. Magnífico, caro Daniel!; senti-me transportado para onde, para minha maior infelicidade, não pude ir.

    Abraço

    Nicolau

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