Em demanda da erva de Bogas
Daniel Reis
Serpão, a erva mágica! |
A logística
exigia saber, primeiro, com quantos contar e disso se encarregou o Vítor
Batista, gestor e mentor do blogue. Como
ponto de partida, sabia-se que no jantar inaugural, em 2009, éramos 20 mas, ao
almoço do 1º aniversário, já em Oleiros e num restaurante à beira do campo
da bola, atingimos o número extraordinário de 62 amigos á mesa. Já então,
muitos respondiam ao chamariz agora repetido: a tal ‘coisa’ e um célebre cabrito estonado da região. Isto, claro, a
somar às velhas amizades e camaradagens de adolescência, reforçadas pelo espírito
verbita, que nos tem mantido próximos pela via fora.
Atendendo a
que, no 2º e 3º aniversários, tivemos 42
e 43participantes, respectivamente, era de prever que cerca de meia-centena respondesse
à chamada. E assim aconteceu.
Uma romaria de 52 almas
Boas vindas em "concertinês" |
Tudo isto foi reunido de véspera, como é da praxe, tal como os demais acessórios exigidos à comezaina. Ou seja, tesoura, uma agulha forte e linha grossa.
Lá pela hora em que o Hotel Santa Margarida cuidava desta
logística, alguém batia Cascais à procura de uma carrinha, para nos precaver do
balão da polícia e propiciar algum alívio na bolsa de cada freguês. E
encontrou-a, como se verá. Outros, de Norte a Sul, reuniam instrumentos
musicais para surpreender no dia seguinte, como o bombo de Ferraz de Moura (o sempre
considerado Presidente da AAVD), e o rabecão do Zé Freire, feito nada menos que
de uma lata
vazia, um braço de madeira e uma corda. Isto sem falar das violas do
Maurício, do Ismael, do Tiago e de nem sei quem mais.
Sábado de
manhã estava de chuva e, devido à distância de Oleiros, a rapaziada de
Guimarães e Porto (como o grupo musical do Madeira Antunes, o Ferraz, o
Guimarães e o João Carlos Lourenço) teve de se levantar mais cedo. Por nós, um
grupo de quatro casais de Lisboa e arredores, arrancámos pelas nove e picos e,
mais uma vez, a solução da carrinha se revelou acertada. Para o atestar, transcrevo
o que o Pinto me disse, no domingo à tarde e já de regresso à Parede: «Foi
uma boa opção viajar em grupo e gostei dos companheiros de viagem. O Vítor
merece a nossa consideração pelo esforço em conseguir a carrinha e por nos ter
conduzido impecavelmente». Tributos
sejam pois prestados a este cidadão, que além de blogguer emérito, também
conduz feito profissional.
À medida que
iamos chegando, entre as onze e a uma, o pessoal da cozinha procedia às
operações intermédias, na preparação da ‘coisa’.
E elas são morosos, exigem amor e carinho e estão descritas numa receita
antiga: ‘Cortam-se
todas as carnes em pedaços pequenos e colocam-se num recipiente. Tempera-se com
sal, noz-moscada e vinho branco e mistura-se bem. Junta-se a hortelã picada,
rega-se com um pouco de sumo de limão e deixa-se repousar durante uns minutos’.
Isto quanto ao manuseamento do recheio. Já para o seu envólucro
devem dar-se, entretanto, os passos seguintes: ‘Coloca-se o bucho num recipiente e salpica-se com uma mão cheia de sal
grosso. Juntam-se-lhe rodelas de laranja e de limão e esfrega-se bem pelo direito
e pelo avesso. Para a qualidade do maranho é essencial utilizar-se bucho
natural (apesar da ASAE) e não tripa sintética, que descaracteriza o produto. ‘Passa-se o bucho por água corrente e
raspa-se com uma faca, também de ambos os lados, até se eliminarem todos os
resíduos e gorduras. Corta-se em pedaços de tamanho semelhante, mais ou menos 10 cm de largura 15 de comprimento, que depois se cosem com linha e agulha, para formar
saquinhos. Para terminar a preparação do recheio, deita-se o arroz num
recipiente, rega-se com o azeite, mexe-se e mistura-se com as carnes,
envolvendo bem todos os ingredientes. Se ficar seco, acrescenta-se mais um
pouco de vinho. Com este recheio, enchem-se os saquinhos até um pouco mais de
meio, deixando espaço para a dilatação do arroz, e cosem-se as aberturas com
linha e agulha. Os sacos devem ficar bem fechados, para não lhes entrar água
durante a cozedura’. Impõe-se, ainda, ‘que se deixe tudo a repousar umas horas (há quem o deixe de um dia para o
outro), para que os sabores se misturem’.
Qual
sesta? Só chinfrim!
«Ainda estão a repousar»,
responderam-me ao almoço, quando perguntei ao pessoal pelos maranhos. Essa era,
porém, a hora de aviar as outras obras – todas excelentes – produzidas na
cozinha do hotel. E era também o tempo de confirmar que o anfitrião, (uma vénia
mais ao nosso querido Fernando Carvalho) não nos deixaria ficar mal quanto a
vinhos. O Callum próprio da casa, e da região, é um branquinho suavíssimo e
marchou muito bem. Como o Fortunato (de Canhoso, Belmonte) nos presenteou com
uma dúzias de garrafas do tinto DoisPontoCinco, da sua própria produção, é caso
para ningém pôr defeito. E não o pôs, de certeza.
À desgarrada! |
Eu gosto muito destes concertineiros minhotos e folgo de os ver em
todas as nossas reuniões, tanto faz em Fátima, como no Tortosendo ou Guimarães.
Mas não podiam ser menos, quem sabe, só dois ou três? Sempre lhes ficava mais
em conta a deslocação.
Antes desta tarde de desgarradas, também houve lugar a um
momento cultural, mais sério e engravatado.
O nosso colega Eduardo Rêgo, homem da televisão e dos programas da vida
selvagem, apresentou-nos o seu documentário de estreia como produtor ‘Arrábida—da Serra ao Mar’. Magnífico, ainda
mais por ter locução do próprio Eduardo, o qual, segundo um folheto distribuído
na hora ‘é, indubitavelmente, a Voz mais emblemática dos programas da
Natureza´’.
O Trovador! |
Mas estavam já
eles meio cansados do folguedo – faltava aí hora e meia para o jantar, quando
na cozinha se ouve a voz do Chefe: «Vamos
lá, meninos, rematar a nossa obra de arte». Isto é: pôr o maranho em
condições de ser levado à mesa. E lá culminaram
eles o ritual (aprendam, que eu não duro sempre): ‘Coloca-se uma panela ao lume com
bastante água, juntam-se os couratos do toucinho e do presunto, um pouco de
azeite, hortelã e sal. Quando começar a ferver, introduzem-se os maranhos e
deixam-se cozer durante cerca de hora e meia. Escorrem-se e servem-se quentes,
cortados às rodelas ou talhados em cruz, com um acompanhamento de legumes
cozidos ou salada».
Arte
e geografia do maranho
Aqui estão: Exmos Maranhos |
Limpava eu, porém, os beiços, quando alguém me tocou no ombro, e
segredou: «Na próxima vez, telefone-me
de véspera, que eu preparo dois ou três com as nossas ervas de Bogas». Baixinho, também, logo retorqui:
«Quanto lhe agradeço, Chefe Leonel».
O segredo desta conversa tem tradução rápida. É que, desta vez,
nós comemos os maranhos do Pinhal Sul (concelhos da Sertã, Proença, Vila de Rei
e Oleiros), cujo sabor de base é a hortelã. Lá mais para o Norte -- do Orvalho
para cima (Bogas, Janeiro, Dornelas, Barroca e Silvares) -- até às portas da
Cova da Beira, mistura-se a hortelã com o serpão, uma planta aromática do género do tominho e que,
essa sim, até engrossa a língua, de tão intensa. Há também quem
lhes junte um pouco de salsa, para o festival de sabores ser completo. Como o
era, quando a minha mãe nos regalava com essas primícias beirãs, lá pela Páscoa
e na festa de S. Sebastião, de há tantos, tantos anos!
De tão real a narrativa do Dani,
ResponderEliminarsoube-me a boca a maranhos como se estivesse ali.
Mas não é a mesma coisa, isso não. Faltaram-me as baladas do Mauricio, com aquela voz vinda de reconditos da alma em que só alguns conseguem entrar.
francisco barroso
Excelente crónica do 4º aniversário do SB! A "pena" ainda está treinada, Dany! Nem parece de quem não faz "ponta de um c..." desde há uns tempos! Lindo...
ResponderEliminarSó posso dizer que foi uma honra receber tão ilustres amigos, que tornaram esta efeméride num dia memorável! E fica ainda a garantia de que "aqueles" maranhos marcarão presença na nossa tertúlia bimensal. Prometido...
Um grande abraço!
fcarvalho
Magnífico, caro Daniel!; senti-me transportado para onde, para minha maior infelicidade, não pude ir.
ResponderEliminarAbraço
Nicolau