quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Call Center



Actores sem rosto
A par do sacrossanto mercado, como o designa Miguel Real, no seu interessantíssimo artigo no Público, de 4 de janeiro deste ano, outra criação fantástica do modelo gestionário do capitalismo reinante é, como já  devem ter calculado, o Call Center.

O Call Center é, numa definição simples da Vikipédia, composto por uma estrutura física e de pessoal, que tem por objetivo centralizar o recebimento de ligações telefónicas, distribuindo-as automaticamente aos atendentes e possibilitando o atendimento aos usuários finais, para pesquisas de mercado, vendas e outros serviços.

Visto assim, nada a alegar. As tecnologias vieram para nos facilitar a vida e vão ficar, pelo menos na vida daqueles que as puderem continuar a pagar. Na verdade, quase todos os assuntos podem hoje resolver-se, através de simples chamadas telefónicas e qualquer empresa com um mínimo de prestígio tem invariavelmente a sua linha azul. E onde é que ela vai dar? Está bom de ver: ao Call Center.

Mas na maioria dos casos as experiências Call Center tornam-se deveras frustrantes e Kafkianas. Antes de aparecer algum humano do outro lado, temos que ouvir uma gravação com sete ou oito propostas para selecionar uma. Na segunda seleção já temos um menor número de propostas. Na terceira, começamos a ter fé que vamos conseguir ainda falar com alguém a quem, não resolvendo o problema, poderemos sempre atirar algumas injurias. Um verdadeiro suplício de Tântalo. Até aquela musica selecionada com mil cuidados, para nos cativar de imediato, nos começa surdamente a irritar.

Finalmente aparece vida do outro lado da linha. Graças a Deus. Conseguimos. Então, contamos o nosso caso com todos os pormenores, cheios de esperança renascida…é então que uma voz muito profissional nos diz do outro lado: muito obrigado pelo tempo de espera. Vou reencaminhar a sua chamada ao Departamento competente: Mais uma musiquinha, que parece nunca mais acabar, até que surge a profissional voz do Departamento. Pensamos: estou salvo. Qual quê!!! Temos de contar de novo a história toda e no fim: só um momento, vou já passar ao técnico. Mais música. É o diabo…Um gajo fica com os nervos em franja.

A culpa é do pessoal do Call Center? Claro que não. Estão quase tão formatados na missão, como o computador que inicialmente nos recebeu com aquela musiquinha agradável e estão tão ao mais desesperados que nós. Os nossos problemas (a internet que caiu ou a factura da eletricidade que está demasiado gorda) são minudências ao pé dos deles. Eles estão, na maioria, completamente fodidos. Jovens na casa dos vinte e tal, licenciados, perscrutando um horizonte vazio de confiança e de esperança, a ganharem ao mês quinhentos ou seiscentos euros, numa idade em que a cabeça está cheia de sonhos, dos quais era suposto realizar alguns.

Mas é como vos disse, uma criação fantástica. Faz-se a caridade de dar emprego aos jovens mais qualificados que alguma outra geração já teve, numa das fases mais criativas das suas vida, para fazerem papel de parvos a cumprir protocolos idiotas e a vender produtos perfeitamente dispensáveis a idosos e incautos pagos, em contrapartida, por salários de aprendiz de serralheiro ou de assistente operacional da função publica no inicio de carreira.

E o que é que o Estado faz? Avisa: se estão mal mudem-se. O mundo é muito grande, e é verdade. Mas isso é o óbvio. Nem era preciso dizê-lo.

É esta a proposta do gerente máximo do país, mas custa ouvir. Eu que nos meus estudos aprendi que o Estado surgiu pela necessidade de proteger a comunidade. De desempenhar funções, que nenhuma empresa poderia assegurar, como a defesa nacional e a justiça e por isso se aceita que se cobrem impostos, anda agora de cócoras junto dos mercado e perante uma enorme crise financeira criada pela banca, obriga os cidadãos a trabalhar meio ano para ele, para a recapitalizar e para pagar dividas que ele próprio arranjou.

Os banqueiros continuam a ter lucros de milhões e o Governo continua a pairar sobre tudo isto como se não vivesse cá. Os topos de gama dos titulares dos altos cargos públicos continuam a circular com a mesma naturalidade que sempre circularam e os colegas de Faculdade das distintas famílias portuguesas, continuam a ser contratados para os gabinetes Ministeriais como especialistas, a ganhar num mês o que os outros ganham no Call Center em meio ano.

E agora uma pergunta: mas o Estado atualmente existe para proteger o quê? Para proteger o cidadão? E uma resposta à Ricardo Araújo Pereira: "para proteger o cidadão! Ele protege é os tomates."

Há um paradoxo que não consigo resolver. Na Idade Média aceitava-se placidamente que os senhores Feudais vivessem na abundância dos seus castelos, perante a pobreza exagerada dos seus súbditos. Mas então, acreditava-se no direito divino, nos direitos hereditários e a Igreja configurava os ignorantes fiéis na aceitação da realidade. E como é que hoje tão informados, tão apetrechados de licenciaturas, doutoramentos, internet, rádio e televisão, em que a influência da Igreja se tornou tão evanescente, nos deixamos, tal como outrora, oprimir desta maneira? Nós que detemos hoje um grau de conhecimento incomensuravelmente maior.

Das duas uma. Aquilo que chamamos de conhecimento, não passa, na maioria das vezes, de informação da treta ou então o sofrimento, como ensinam os tratados de Teosofia, é indispensável para a nossa evolução, porque dizem o seguinte: a dor aguilhoa-nos, e, procurando evitá-la, a nossa inteligência desenvolve-se A dor guia-nos pois que a repulsão que por ela experimentamos faz com que evitemos o caminho onde a encontramos. – enfim, a dor purifica-nos,…é a lei do karma,…e necessitamos, por isso, de revestir-nos de resignação, a exemplo de Cristo.

A verdade é que me sinto perdido e o nevoeiro não se dissipa jamais...

E mais não disse. Descalçou as luvas, limpou as mãos à parede e foi-se, como dizia o prof. Ernesto.

PS. Talvez demasiado profana para alguns, não posse deixar de dedicar esta crónica ao meu querido amigo e conterrâneo Hipólito Jerónimo.

Lisboa, em 8.1.13
Francisco Barroso

5 comentários:

  1. Bruno Ribeiro Barata9 de janeiro de 2013 às 16:07

    Brilhante como sempre!

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  2. Até que é interessante esta reflexão!
    Como é que se justifica que um Estado (o português) com cada vez menos funções exija cada vez mais assessores, consultores?... (...)

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  3. Ferreira Fernandes, numa das suas últimas crónicas no DN, escrevia que se abateu, sobre Lisboa, um silêncio ensurdecedor. As pessoas deixaram de falar, de se alegrar.
    Ontem, dizia-me uma idosa que já nem pode ouvir notícias. O medo abateu-se sobre os portugueses, sem esperança nenhuma nos seus dirigentes.
    E no entanto há riqueza, a crise é artificial (qualquer um dos nossos missionários a trabalhar num país pobre deve achá-la bem estranha), provocada por homens sem coração, aqui e lá fora, cuja capacidade de fazer o mal não é travada pela bondade dos homens bons, que são quase todos. E a maldade organizada é muito mais poderosa que a bondade distraída.
    Assim se terão sentido os alemães e os russos, quando tiveram de submeter-se a Hitler e a Estaline. Mas os criminosos de hoje vêm de luvas e pantufas, disfarçados de democratas...

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  4. Um outro tema José! Bem actual:
    "Ser indiferente é cull" - os homens sem coração...
    Está mesmo em alta, está na moda resistir ao apelo social, quanto mais duro para com o próximo melhor...
    Está mesmo a pedir uns pontos de vista. Não acham?

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  5. Recebi ontem um poema de uma amiga. Dizia o seguinte:

    "Surge Janeiro frio e pardacento,
    Descem da serra os lobos ao povoado;
    Assentam-se os fantoches em S. Bento,
    E o decreto da fome é publicado;"

    "Edita-se a novela do orçamento;
    Cresce a miséria ao pvo amordaçado;
    Mas os biltres do novo parlamento,
    Usufruem seis contos de ordenado." (José Régio, 1969)

    Se descontarmos o pormenor da inflação, estamos conversados quanto à política à portuguesa. No mais, o Chico Barroso com a sua prosa vigorosa e arrojada, apresenta-se como um cambatente em prol da filosofia e dos valores que nos distinguem como pessoas. Sempre contra a estandardização, a automatização e a robotização imposta ao Homem pelo capital, tenha este a cor que tiver.
    Um abraço, ó Chico.
    Zé Barroso





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