Actores sem rosto |
A par do sacrossanto mercado, como o designa Miguel Real, no seu
interessantíssimo artigo no Público, de 4 de janeiro deste ano, outra criação fantástica
do modelo gestionário do capitalismo reinante é, como já devem ter calculado, o Call Center.
O Call Center é, numa definição simples da Vikipédia, composto por
uma estrutura física e de pessoal, que tem por objetivo centralizar o
recebimento de ligações telefónicas, distribuindo-as automaticamente aos
atendentes e possibilitando o atendimento aos usuários finais, para pesquisas
de mercado, vendas e outros serviços.
Visto assim, nada a alegar. As
tecnologias vieram para nos facilitar a vida e vão ficar, pelo menos na vida
daqueles que as puderem continuar a pagar. Na verdade, quase todos os assuntos
podem hoje resolver-se, através de simples chamadas telefónicas e qualquer
empresa com um mínimo de prestígio tem invariavelmente a sua linha azul. E onde
é que ela vai dar? Está bom de ver: ao Call
Center.
Mas na maioria dos casos as
experiências Call Center tornam-se deveras
frustrantes e Kafkianas. Antes de aparecer algum humano do outro lado, temos
que ouvir uma gravação com sete ou oito propostas para selecionar uma. Na
segunda seleção já temos um menor número de propostas. Na terceira, começamos a
ter fé que vamos conseguir ainda falar com alguém a quem, não resolvendo o
problema, poderemos sempre atirar algumas injurias. Um verdadeiro suplício de
Tântalo. Até aquela musica selecionada com mil cuidados, para nos cativar de
imediato, nos começa surdamente a irritar.
Finalmente aparece vida do outro
lado da linha. Graças a Deus. Conseguimos. Então, contamos o nosso caso com
todos os pormenores, cheios de esperança renascida…é então que uma voz muito
profissional nos diz do outro lado: muito
obrigado pelo tempo de espera. Vou reencaminhar a sua chamada ao Departamento
competente: Mais uma musiquinha, que parece nunca mais acabar, até que surge
a profissional voz do Departamento. Pensamos: estou salvo. Qual quê!!! Temos de
contar de novo a história toda e no fim: só
um momento, vou já passar ao técnico. Mais música. É o diabo…Um gajo fica
com os nervos em franja.
A culpa é do pessoal do Call
Center? Claro que não. Estão quase tão formatados na missão, como o computador
que inicialmente nos recebeu com aquela musiquinha agradável e estão tão ao
mais desesperados que nós. Os nossos problemas (a internet que caiu ou a
factura da eletricidade que está demasiado gorda) são minudências ao pé dos
deles. Eles estão, na maioria, completamente fodidos. Jovens na casa dos vinte
e tal, licenciados, perscrutando um
horizonte vazio de confiança e de esperança, a ganharem ao mês quinhentos
ou seiscentos euros, numa idade em que a cabeça está cheia de sonhos, dos quais
era suposto realizar alguns.
Mas é como vos disse, uma criação
fantástica. Faz-se a caridade de dar emprego aos jovens mais qualificados que
alguma outra geração já teve, numa das fases mais criativas das suas vida, para
fazerem papel de parvos a cumprir protocolos idiotas e a vender produtos perfeitamente
dispensáveis a idosos e incautos pagos, em contrapartida, por salários de
aprendiz de serralheiro ou de assistente operacional da função publica no
inicio de carreira.
E o que é que o Estado faz?
Avisa: se estão mal mudem-se. O mundo é muito grande, e é verdade. Mas
isso é o óbvio. Nem era preciso dizê-lo.
É esta a proposta do gerente
máximo do país, mas custa ouvir. Eu que nos meus estudos aprendi que o Estado
surgiu pela necessidade de proteger a comunidade. De desempenhar funções, que
nenhuma empresa poderia assegurar, como a defesa nacional e a justiça e por
isso se aceita que se cobrem impostos, anda agora de cócoras junto dos mercado
e perante uma enorme crise financeira criada pela banca, obriga os cidadãos a
trabalhar meio ano para ele, para a recapitalizar e para pagar dividas que ele
próprio arranjou.
Os banqueiros continuam a ter
lucros de milhões e o Governo continua a pairar sobre tudo isto como se não
vivesse cá. Os topos de gama dos titulares dos altos cargos públicos continuam
a circular com a mesma naturalidade que sempre circularam e os colegas de
Faculdade das distintas famílias portuguesas, continuam a ser contratados para
os gabinetes Ministeriais como especialistas, a ganhar num mês o que os outros
ganham no Call Center em meio ano.
E agora uma pergunta: mas o
Estado atualmente existe para proteger o quê? Para proteger o cidadão? E uma
resposta à Ricardo Araújo Pereira: "para proteger o cidadão! Ele protege é os tomates."
Há um paradoxo que não consigo
resolver. Na Idade Média aceitava-se placidamente que os senhores Feudais
vivessem na abundância dos seus castelos, perante a pobreza exagerada dos seus
súbditos. Mas então, acreditava-se no direito divino, nos direitos hereditários
e a Igreja configurava os ignorantes fiéis na aceitação da realidade. E como é
que hoje tão informados, tão apetrechados de licenciaturas, doutoramentos,
internet, rádio e televisão, em que a influência da Igreja se tornou tão evanescente,
nos deixamos, tal como outrora, oprimir desta maneira? Nós que detemos hoje um
grau de conhecimento incomensuravelmente maior.
Das duas uma. Aquilo que chamamos
de conhecimento, não passa, na maioria das vezes, de informação da treta ou
então o sofrimento, como ensinam os tratados de Teosofia, é indispensável para
a nossa evolução, porque dizem o seguinte: a
dor aguilhoa-nos, e, procurando evitá-la, a nossa inteligência desenvolve-se A
dor guia-nos pois que a repulsão que por ela experimentamos faz com que
evitemos o caminho onde a encontramos. – enfim, a dor purifica-nos,…é a lei do
karma,…e necessitamos, por isso, de revestir-nos de resignação, a exemplo de
Cristo.
A verdade é que me sinto perdido
e o nevoeiro não se dissipa jamais...
E mais não disse. Descalçou as
luvas, limpou as mãos à parede e foi-se, como dizia o prof. Ernesto.
PS. Talvez demasiado profana para
alguns, não posse deixar de dedicar esta crónica ao meu querido amigo e
conterrâneo Hipólito Jerónimo.
Lisboa, em 8.1.13
Francisco Barroso
Brilhante como sempre!
ResponderEliminarAté que é interessante esta reflexão!
ResponderEliminarComo é que se justifica que um Estado (o português) com cada vez menos funções exija cada vez mais assessores, consultores?... (...)
Ferreira Fernandes, numa das suas últimas crónicas no DN, escrevia que se abateu, sobre Lisboa, um silêncio ensurdecedor. As pessoas deixaram de falar, de se alegrar.
ResponderEliminarOntem, dizia-me uma idosa que já nem pode ouvir notícias. O medo abateu-se sobre os portugueses, sem esperança nenhuma nos seus dirigentes.
E no entanto há riqueza, a crise é artificial (qualquer um dos nossos missionários a trabalhar num país pobre deve achá-la bem estranha), provocada por homens sem coração, aqui e lá fora, cuja capacidade de fazer o mal não é travada pela bondade dos homens bons, que são quase todos. E a maldade organizada é muito mais poderosa que a bondade distraída.
Assim se terão sentido os alemães e os russos, quando tiveram de submeter-se a Hitler e a Estaline. Mas os criminosos de hoje vêm de luvas e pantufas, disfarçados de democratas...
Um outro tema José! Bem actual:
ResponderEliminar"Ser indiferente é cull" - os homens sem coração...
Está mesmo em alta, está na moda resistir ao apelo social, quanto mais duro para com o próximo melhor...
Está mesmo a pedir uns pontos de vista. Não acham?
Recebi ontem um poema de uma amiga. Dizia o seguinte:
ResponderEliminar"Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em S. Bento,
E o decreto da fome é publicado;"
"Edita-se a novela do orçamento;
Cresce a miséria ao pvo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento,
Usufruem seis contos de ordenado." (José Régio, 1969)
Se descontarmos o pormenor da inflação, estamos conversados quanto à política à portuguesa. No mais, o Chico Barroso com a sua prosa vigorosa e arrojada, apresenta-se como um cambatente em prol da filosofia e dos valores que nos distinguem como pessoas. Sempre contra a estandardização, a automatização e a robotização imposta ao Homem pelo capital, tenha este a cor que tiver.
Um abraço, ó Chico.
Zé Barroso