Estava
eu a comer um caldo de vagens polvilhado de segurelha (um verdadeiro mimo para
os apreciadores da cozinha minimalista) quando me aparece a imagem
ensanguentada de Kadafi na TV, noticiando a sua morte (péssimo gosto de
escolherem as horas das refeições para mostrar este tipo de imagens).
Pensei.
A esta hora já deve estar na barca de Caronte a atravessar a Estige e o
Aqueronte a caminho do Inferno, mas logo o pensamento religioso, que não me
abandona, porque configurado na fé, se sobrepõe e imaginei a experiência difícil
e de limite dos seus últimos dias e na possibilidade do arrependimento. Teve
mais tempo que o bom ladrão e Jesus podia ter-lhe dado a mão. Não me parece que
alguma das hipóteses seja mais válida que a outra e não há para já maneira de
as testar.
No
entanto, depois de um exercício de hermenêutica apurado, quem sabe, pelo aroma
da segurelha, apercebi-me da quantidade enorme de admiradores, que ele tinha e
tem, e que dificilmente imaginaria, mesmo como mera possibilidade.
São
factos públicos e notórios (graças à TV) os rasgados elogios que ainda há
poucos anos lhe fez o nosso ex-Primeiro Ministro. Por toda a Europa o recebiam
com pompa e circunstância e adoravam tanto o seu carisma como os depósitos que
fazia nos bancos por esse mundo fora.
Caiu
em desgraça, foi perseguido até à morte, mas a sua herança espiritual mantém-se
viva – o pensamento Kadafiano.
Querem
exemplos? O nosso país está cheio deles. O nosso país é, na verdade, um país
singular. É um país que está separado por uma linha (como dizem na TV) abaixo
da qual estão os que trabalham, estudam, gerem micro-mini-pequenas e médias empresas que produzem serviços,
conhecimento, produtos, isto é riqueza e acima da qual estão os que
ilicitamente se apropriam dessa riqueza.
Faz
algum sentido que um gestor público, por mais capaz que seja, só porque está à
frente de uma empresa modernaça que dá pelo nome de Renováveis e que é
financiada por nós todos tenha um prémio de produtividade de 3 milhões? O que é
isto? Pensamento Kadafiano.
Faz
algum sentido, que o titulares de cargos políticos, numa situação de
privilégio, se tenham atribuído subvenções vitalicias, ao fim de 8 anos de
actividade, que muitos deles recebem antes da idade de aposentação estabelecida
para o regime geral ou da função pública e com o país à beira da banca rota,
não tenham a coragem de as suspender até haver de novo condições normais de
pagamento. O que é isto? Pensamento Kadafiano.
Faz
algum sentido, que num país com o nível de vida elevadíssimo como o nosso se vá
confiscar parte do salário de pessoas com rendimentos acima de 485 €, enquanto
os gabinetes Ministeriais continuam a usar carros de alta cilindrada ao preço
que está a gasolina? O que é isto? Pensamento Kadafiano.
Estes
são alguns elementos de prova de que aqueles que estão acima da tal linha que
nos separa já não conhecem as pessoas concretas (só vêm abstracções), não
conhecem a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto.
O professor Ernesto
que me perdoe, mas hoje acabo com o Eclesiastes: Vi tudo o que se faz debaixo do sol e achei que tudo é vaidade e vento
que passa.
Francisco Barroso
Grande texto, parabéns!
ResponderEliminare o detalhe fabuloso de inventares um novo conceito "o Pensamento Kadafiano", qualquer dia destes vais ouvir as tias de Cascais, quando quiserem fazer referência ao Kafka (elas não sabem quem é, mas é chique), dizerem - Isso é tão Kadafiano.
Mas perante o factos o nosso país é Kafkiano e Kadafiano.
És um pensador lúcido, clarividente.
ResponderEliminarSabes que não me tinha ocorrido que muito do que vemos e sabemos acontecer acima da "tal linha" é fruto do pensamento kadafiano?
Mas olha que apesar de tudo poder ser vaidade e vento que passa (como fizeste questão de referir na tua crónica), há marcas que ficam, indeléveis, depois do vento passar. O Eclesiastes é um livro sapiencial que demonstra a futilidade da vida, é certo, mas também denuncia as consequências de uma estrutura social injusta.
É preocupante a crescente desigualdade social, é preocupante o estado da nação e é preocupante andarmos todos tão preocupados. Mas mais preocupante do que tudo isso é o nosso défice, não o "tal" mas o défice de líderes.
Gostei de ler a tua crónica.
Que o aroma da segurelha, a par de outros aromas, continue a apurar os teus exercícios de hermenêutica.
MM
O grande guru volta a atacar. E, como sempre, acertando em cheio na mouche da nossa curiosidade e não só. Sou bem capaz, depois de ler com atenção e a demora que o camarada Xico merece, até de lhe dar umas achegas, por estes dias. Para já, vou flanar para a Beira e almoçar com o meu amigo Pe. José Cortes na mansão de xisto do Ismael na Malhada Velha. E ouvi dizer que estará lá, pelas nossas bem amadas terras de Bogas, uma boa rapaziada da nossa e muito nossa juventude verbita. Dani, o rei de Bogas e arredores
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