sábado, 11 de dezembro de 2010

A ingratidão

 F. Barroso


Aqui que ninguém nos ouve, quero confessar-vos que se há coisas que mexem comigo, uma delas e talvez a mais grave é a ingratidão. E o mundo está cheio dela como bem sabeis. Por isso é que é estranho estar a falar-vos disto, mas é que já ando pelos cabelos de com tanto e-mail, tanto artigo e tanta declaração a dizer mal dos governantes em geral e deste Governo em particular.
Quero demarcar-me dessa gente aqui e agora. É por isso que me confesso e vos digo que os governantes pós revolução de Abril foram em geral e de longe os melhores governantes que este velho e pobre país já teve ao longo de toda a sua história, por isso lhes tiro daqui o chapéu.
Já há quem fale que bom foi o Salazar. Um homem poupado que mandou pôr dois contadores de luz em S. Bento para pagar, a expensas suas, a energia que gastava no andar que lhe servia de habitação. Bonito? Bonito. Tinha uma capoeira no quintal do palácio para ajudar na economia doméstica. Toda a gente tinha. Quem é que gostava de frango de aviário nessa altura? Encheu os cofres do Estado. É verdade, mas a maioria dos nossos pais andaram descalços até ir para a tropa e cheios de fome muitas vezes.
Se não me acreditam leiam A GUERRA DA MINA, do nosso Daniel Reis, sobre os mineiros da Panasqueira, onde retrata com mestria o viver dos pobres em Portugal, que era quase toda a gente.
A prosperidade das especiarias quantas vidas nos custou? Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal…quantos guerreiros, quantos marinheiros? O ouro do Brasil, quantos, quantos?
E agora? Fez-se uma revolução de cravos e abriram-se as fundações para instituir o Quinto Império, que o António Vieira e o Agostinho da Silva, homens da transcendência, vislumbraram para Portugal e durante 30 anos o sonho foi maravilhoso.
Reformas para todos. Quantos descontaram para ela e quantos anos? Ensino para todos praticamente à borla. Antes, quantos tinham acesso ao ensino superior? Salário mínimo para quem não tem outro tipo de rendimentos, até para os ciganos, que dizem que são romenos e para os africanos, não é maravilhoso? Dinheiro à farta para comprar casa, automóvel, férias no Egipto, na Tailândia ou no México…E para quem, mesmo assim, era incapaz de entrar no sonho, era este induzido através de programas gratuitos de metadona e apoio psicológico.
Acabou-se? Acabou. Mas que foram 30 anos de arromba, foram. Só há um paralelo assim, na história das civilizações, narrado no Livro dos livros que foi a promessa aos hebreus da terra de Canaã onde corria o leite e o mel e estes, povo avisado e culto, preferiram manter-se 40 anos no deserto antes de lá entrar, quando fugiram do Egipto, por causa da maná fresquinho que todas as manhãs caía do céu. 
O que me irrita, no meio disto tudo, é que praticamente toda agente sabia que isto não podia durar eternamente. Que me recorde, só o velho Medina Carreira e o Campos e Cunha anunciavam regularmente que o fim estava próximo (foi também previsto pelo X. Barroso, na sua crónica do Palavreado) e tudo a assobiar para o ar. Ó doce ilusão…
Nós não sabíamos que as nossas aldeias estão morrer há anos? Que o país interior está quase morto? Que a nossa débil agricultura morreu com a PAC e que a nossa industria se encontrava em lenta agonia desde que começou a globalização?
Quem é que nos proporcionou esta maravilhosa aventura? Os tais governantes de quem agora tanto mal dizem. Se isto não é ingratidão é o quê, afinal? Expliquem-me.

PS. Eu sei que é legitimo pensar que o Sócrates até pode nem ter estaleca para o lugar. Que acabou o curso à custa dos amigos e que nunca fez nada na vida senão vender jogo. Mas se ele fosse um homem bem preparado, ele e os outros, isto não tinha durado nem metade.

2 comentários:

  1. Já andava a sentir a falta das tuas palavras, mas o pousio valeu a pena.
    Fartei-me de rir com esta tua tragicomédia.
    Um abraço.
    José Teodoro

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  2. Zé, o trágico desta tragicomédia é que não é comedia é só mesmo tragédia! Eu, ainda agora comecei e já sofro do mal que o Xico chama de ingratidão, porque este pedaço de texto empurra-nos para outra tragédia: a culpa, enquanto membros de uma nação que elege os piores para dirigir os seus destinos, que se aproveita da sua mediocridade e do seu laxismo para "soltar a franga" e depois se descarta com a maior e a mais profunda das depressões de um povo intoxicado!

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