Voltávamos ao Seminário no último dia de setembro e os primeiros dias
eram passados a refazer os laços de fraternidade que nos uniam. Mas havia um
grupo especialmente desleixado nessa tarefa: os raianos do Sabugal. Enquanto os
alunos da Cova da Beira, da Gardunha e do Zêzere mineiro rapidamente entravam
em velocidade de cruzeiro, os raianos tinham primeiro uma tarefa muito mais
importante: contar uns aos outros como fora a capeia nas suas terras.
Juntavam-se em grupos numerosos e cada um contava os episódios mais
extraordinários que tinham vivido ou a que haviam assistido. «Fui a Espanha e
ajudei a passar as vacas para este lado, sempre ao lado delas.» ou «Os homens
baixaram muito o forcão e a vaca saltou para cima e ficou presa nos paus.»
Nós, os leigos, andávamos em redor do grupo, a ouvir. Algum atirava
uma provocação «Tourear com vacas, ah! ah! ah!», mas só lhe dispensavam o olhar
de desprezo e dó que se reserva aos pobres ignorantes.
Bem podíamos nós, os de São Vicente, ainda mal refeitos das Festas de
Verão, falar-lhes da grandiosidade da procissão do Santo Cristo ou do fogo de
artifício, que eles pouco ligariam. Perante tanto fervor, nem tentávamos,
receosos de cair no ridículo.
Por isso, quando há meses o médico Sanches Pires (o Zé Manel Patana da
Lageosa) apresentou, em Castelo Branco, onde vive, um livro sobre as capeias da
sua terra, eu não resisti e fiquei a compreender melhor o entusiasmo dos meus
colegas. Soube que já foi apresentado na sua terá natal, que há outros livros
sobre as capeias de outras terras raianas e que a capeia é agora património
imaterial nacional.
Há dias recebi o Contacto e, num artigo do Zé Amaro, sobre os 50 anos
da ordenação do Padre Vaz, lá vem uma foto da capeia como um dos acontecimentos
mais marcantes da sua vida. ATÉ O PADRE VAZ, um homem tão acima das simples
coisas terrenas! (No artigo, percebi que ele tem, sempre teve, os pés bem
assentes na terra.)
Adolescente inquieto com tanto mundo desconhecido, um dia perguntei a
um colega raiano o que era afinal a fronteira, o que havia lá a marcá-la.
Respondeu-me que nada, o gado pastava dos dois lados e iam às festas uns dos
outros. Então percebi que a fronteira era apenas uma linha nos mapas dos
livros, uma coisa que só existia na cabeça de quem mandava.
José Teodoro
Prata
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