José Teodoro Prata
Foi no Outono de 1972 ou Inverno de 73 do nosso quinto ano. Ainda hoje não compreendo como aquilo aconteceu, mas deram-nos açorda cinco refeições seguidas. À quarta refeição, já muitas mesas não levantaram as travessas no guiché da cozinha e ficaram-se pela sopa. O Pe. Felgueiras obrigava a levar a travessa aos que apanhava em falta, mas ela voltava tal como viera, rasa de açorda.
Nesse tempo, o quinto ano comia mesmo à esquerda da porta da grande sala, onde, atualmente, se realizam os almoços, nos encontros dos antigos alunos. E, naquele entardecer da quinta refeição de açorda, os mais velhos e esclarecidos mobilizaram as mesas do quinto ano a não tocar nas travessas. O Casalta de Aldeia da Ponte, rapaz magro e irrequieto, o mais velho dos Casalta com quem convivi no Tortosendo, era o grande impulsionador da revolta. Não parava sentado, entre mesas e a porta para o corredor, a controlar a chegada do padre vigilante.
Alguém se lembrou dos Vampiros do Zeca Afonso e a ideia foi crescendo. No verão, o José Eduardo encontrara, na praia, o José Afonso e os filhos, já da nossa idade. Falara-nos dele. Nesse tempo, os baladeiros estavam na moda, dentro e fora do Seminário, e por isso muitos de nós conheciam “Os Vampiros”. E, com o Casalta como maestro, a canção soou pelo salão, em protesto contra a maior invasão de açorda que já se vira desde que o mundo era mundo.
O Pe. Felgueiras ouviu, na outra sala, e veio apressado. Silêncio total. Perguntou o que se passava e nada. Repetiu a pergunta e moita. Passaram-se longos minutos, talvez apenas segundos que pareceram uma eternidade. Não saíamos dali. Até que, da outra ponta da sala, um miúdo franzino decidiu desempatar aquilo e esclareceu, numa pronúncia típica do vale profundo do Zêzere: «Estavam a cantar “Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada.”»
O Pe. Felgueiras deu-se por satisfeito e deixou-nos sair. Passei por ele no corredor e disse-me, à parte: «Esperava que fosses tu a falar. Às vezes, é preciso sair da multidão, para nos afirmarmos como homens.»
Com estas histórias, nos fizemos os homens que hoje somos. E esta tem algumas personagens de quem gosto muito.
Primeiro, um abraço ao miúdo franzino, a falar achim, como eu, que já não é franzino nem fala achim, porque os anos e a missão no Brasil o tornaram mais encorpado e de falar cantante. Um grande abraço ao Pe. José Cortes.
Depois, o velho Casalta. Velho, por ser o mais velho dos Casalta de Aldeia da Ponte. Não éramos especialmente amigos, mas com ele aprendi muitas coisas, pois tinha mais um ano que eu e já sabia o que eu só aprenderia mais tarde. Nunca mais o voltei a encontrar. Vai sendo tempo de aparecer pelo Tortosendo, no último sábado de Outubro! Um abraço, até esse dia.
E também um grande abraço para o ex-padre Felgueiras, o jovem padre que trouxe uma tal lufada de ar fresco ao Tortosendo, naqueles últimos anos de bolor político-social, que lhe ia arrasando as paredes. Se às vezes Deus escreve direito por linhas tortas, o Pe. Felgueiras de então ajudou-nos a abrir os olhos para um mundo de que desconhecíamos quase tudo.
E também um sentido abraço para o Frazão, nesta hora tão difícil que está a viver. A propósito das canções de José Afonso, lembro-me dele como representante da AAVD, num encontro dos antigos alunos de Castelo Branco, no recinto da Senhora de Mércoles, o primeiro em que participei. Contou-nos, então, que os recrutas de Mafra, acabados de sair da Universidade, cantavam as canções do Zeca, nos camiões, a caminho dos exercícios militares noturnos. E levaram-nas na voz e no pensamento, para a guerra do Ultramar, de onde voltaram para fazer o 25 de Abril.
Na altura em que se passaram os dados que descreves, estava eu a terminar a especialidade em Mafra e, depois fui colocado em Castelo Branco no que foi o BC6.
ResponderEliminarTendo deixado a SVD,Lisboa em Julho de 1972, fui direitinho para a tapada de Mafra.O espirito ia mais que preparado e o fisico também, para enfrentar em regime de obrigatoriedade essa eatapa dificil.
Durante os dois anoscomo estudante no então ISET, em Lisboa, pudemo-nos dar conta da situação de paranoia dos dirigentes politicos de então e da real falta de liberdade e de expressão a que eramos submetidos sem apelo.
As Universidades, institutos...estavam sob serrada vigilância e a comunicação fazia-se através de panfletos. E, nos iamos despertando e acumulando dados novos que nos faziam descobrir a verdadeira realidade do pais que também eramos.
A nossa formação enrequecia-se participando nas comunidades paroquiais onde muitos jovens universitarios iam construindo verdadeiras redes de informação servindo-se da cultura para irrigar a população. Foi assim que editamos varios fasciculos de autores portugueses censurados e entre eles o Antonio Aleixo, o Zeca Afonso...com quem partilhamos um serão algures em Lisboa longe das escutas negras de então(1972). Mas tudo no maximo segredo.
Foi muito util esta aprendizagem partilhada com os jovens estudantes de Lisboa que me ajudou a vencer as etapas seguintes, Mafra e Castelo Branco.
Em Castelo Branco, enquanto formador de jovens recrutas e depois como responsavel pelo Centro Informativo, pude fazer passar a mensagem dos valores humanistas que nos caracterizavam dentro do respeito e da tolerância e da liberdade a que todos tinhamos direito.Muita subtilidade. Com muito testemunho proprio mas também com muitos riscos.
Depois chegou o 25 de Abril. E mesmo assim, um artigo sobre a obra do Zeca Afonso( verão de 1974)foi-me censurado quando apresentei a redação do jornal da Unidade ao comandante. Tive de eliminar certas frases, mas consegui que o autor da Grandola Vila Morena, terra da fraternidade pudesse ser publicado.
Foram caminhadas debaixo de risco, mas que valeram a pena. Mas,a força vinha em grande parte,da "grande escola que tivemos" na SVD.
Tive que refazer memórias, mas cheguei lá... claro que tinha que chegar!... Quando entrei para o Tortosendo, ainda fui para o refeitório velho, uma espécie de polivalente, para refeições e teatro. Depois fomos para as novas instalações, os refeitórios que hoje conhecemos. Queria confirmar outro acontecimento, antes de 25 de Abril, foi a representação do Lugre de Bernardo Santareno. Lembro aquela noite, especialmente escura e a surpresa de ver descer vultos da Vila e de entrarem furtivamente no salão, mantendo-se um silêncio cúmplice. Fomos informados de que se tratava de uma peça de um autor pouco amado à época, daí aquela discrição. O Zé Teodoro, o Maurício... tinham um papel relevante na peça, ensaiada peloPe. José Vaz (?). Lembro que todo este cenário, os visitantes furtivos e o conteúdo da peça me deixaram intrigado durante um certo tempo... até ao raiar de uma madrugada de Abril!
ResponderEliminarZé, foi assim?
Foi parecido.
ResponderEliminarNa altura do Lugre, já o Maurício nos trocara pela filha do Cabo da Guarda, por quem se apaixonou no início do quinto ano.
Nessa peça, entrava a minha turma do Secundário quase toda. Não havia grandes protagonistas, era um colectivo, como será a vida num barco de pesca. Desconhecia a presença dos visitantes furtivos, pois estava nos bastidores. Mas decerto lá terão estado, pois de seguida fomos representá-la ao Unidos, o grande centro de cultura da resistência ao regime, no Tortosendo.
Recordo-me de, no final da peça, quando saltei do barco para me suicidar, cair com a cara a escassos milímetros de um prego alto que, por pouco, não me furou um olho.
Por estas e por outras é que nós frequentámos a melhor escola que existia, como costumava dizer o profesor Ernesto.
Nota: Não tenho a certeza absoluta se as refeições de açorda foram 5 ou apenas 3. Não faz muita diferença, mas a verdade acima de tudo. Ninguém se lembra!
Feliz recordação esta do José Teodoro. Lembro-me perfeitamente deste caso e de ter cantado "Os Vampiros". Andaria no 3.º ano. No entanto, pensava que isto teria ocorrido já após o 25 de Abril de 74. Assim, tendo sido antes daquela data, ainda merece mais realce. Nunca esqueci a cara do, então Padre, Felgueiras ao entrar naquele refeitório.
ResponderEliminarAntónio Rui Barata